Muita gente não se lembra, mas no Brasil as cotas eleitorais para mulheres existem desde 1995. A lei 9.100, daquele ano, estabelecia as normas para as eleições municipais do ano seguinte. Ela definia que “vinte por cento, no mínimo, das vagas de cada partido ou coligação deverão ser preenchidas por candidaturas de mulheres”.
Uma reportagem publicada na Folha de S. Paulo no dia 29 de julho de 1996 (“Cota limita candidaturas de mulheres”, de Patrícia Zorzan), tratava da resistência dos partidos a registrar candidaturas femininas. No texto, um membro da Executiva Estadual do Partido Progressista Brasileiro, hoje Progressistas, dizia que “sobrou candidata” e que elas eram “excelentes”, mas o partido não poderia “preterir os homens”. Naquelas eleições, elas foram 18% das candidatas e 11,2% das eleitas, um resultado fraco, mas 50% maior que o do pleito de 1992, em que as mulheres haviam sido 7,5% das eleitas.
Pouco depois, a legislação se alteraria. A lei 9.504, de 1997, definiu o percentual mínimo de 30% e máximo de 70% para cada um dos sexos nas listas eleitorais, aplicável às eleições para os cargos de vereador, deputado estadual e deputado federal. Em um sistema de lista aberta, as cotas nas eleições (e não como reserva de assentos) não deveriam assustar. Mesmo assim, os partidos entenderam que era melhor garantir que os homens não seriam “preteridos”. A obrigatoriedade de preencher foi substituída pela de reservar vagas, ao mesmo tempo que se ampliou o percentual de candidaturas em relação aos cargos disponíveis em até 200%.
Assim, embora as cotas fossem agora de 30%, nas eleições municipais de 2000 as mulheres corresponderam a 19% das candidaturas e 11,6% das eleitas. Pouco mudaria nos resultados dos pleitos seguintes. Com a lei 12.034, de 2009, que alterou a redação adotada em 1997, passando a determinar o preenchimento das vagas pelos partidos, o percentual de candidaturas femininas ultrapassou 30%. Mas o de eleitas atingiu 13,5% em 2016, confirmando uma sub-representação que se agrava entre as mulheres pardas e negras, que foram apenas 5% do total de candidaturas vitoriosas. Vale observar, ainda, que uma em cada quatro cidade brasileiras não elegeu mulheres para a Câmara de Vereadores.
É possível esperar mudanças para o pleito de 2020?
Em 2018, provocado pela Ação Direta de Inconstitucionalidade 5617 da Procuradoria Geral da República, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que 30% dos recursos do Fundo Partidário para financiamento de campanhas deve ser dirigido às mulheres. Antes disso, vigorava legislação que definia um teto de 15%. No mesmo ano, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) confirmou a decisão e a ampliou, definindo que esse percentual valeria também para a propaganda eleitoral partidária, garantindo o mínimo de 30% do tempo de rádio e TV para as mulheres. Essas determinações são um fator no aumento de 50% no percentual de eleitas para a Câmara dos Deputados e de 41,2% no total de eleitas para as Assembleias estaduais e no Distrito Federal. Luciana Oliveira Ramos e Catarina Barbieri, da FGV-SP, mostraram que houve menor concentração dos recursos para financiamento das campanhas, mas que as desigualdades raciais ficaram ainda mais evidentes. E, claro, a obrigação legal de financiar as candidaturas femininas encontrou reações nas candidaturas-laranja, uma das formas encontradas pelos partidos para, mais uma vez, não “preterir os homens”.
Julgamentos relativos ao mínimo de mulheres nas chapas nas eleições de 2016 e consultas sobre as decisões de 2018, levaram a novas resoluções do TSE, em 2019, com o objetivo de impedir fraudes. A resolução 23.609/2019 deixa claro que o não atendimento do mínimo de 30% de candidaturas é suficiente para o indeferimento do pedido de registro do partido. Essas candidaturas devem ter sido devidamente autorizadas por escrito pelas mulheres e a ausência dessa autorização pode levar ao indeferimento de toda a lista. Já a resolução 23.607/2019 determina que os recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas destinados às candidaturas de mulheres devem ser aplicados pelas candidatas no interesse de suas campanhas ou no de outras candidaturas femininas. As dobradinhas com homens podem ser financiadas, desde que em seu interesse.
Além das mudanças legais, há algo menos direto, mas com efeito potencial importante, que precisa ser considerado. Multiplicaram-se as plataformas e movimentos voltados para a candidatura de mulheres e, mais especificamente, de mulheres negras, assim como os cursos para sua capacitação. Após décadas de debates e ações, difundiu-se no Brasil o entendimento de que há algo de errado no largo controle masculino sobre os cargos. Ele passa por processos internacionais, com forte impacto regional – ao menos 16 países na América Latina têm hoje leis de cotas ou paridade. Passa também pela maior capilaridade dos feminismos, pelas candidaturas coletivas, pela mudança nas coberturas jornalísticas.
Persiste, no entanto, a recusa dos partidos a apoiar as candidaturas das mulheres. Numa dinâmica que se repõe a cada eleição, as mulheres é que são preteridas na organização das listas partidárias, do financiamento e da propaganda. A esse fator bem conhecido, tem se somado outro, que ainda precisamos mapear melhor, a violência contra as mulheres na política. Ela se manifesta nas redes sociais e nas ruas, nas reuniões partidárias e nos trâmites do subfinanciamento, tornando o custo da participação política ainda maior para as mulheres. As instituições eleitorais precisam estar atentas às fraudes, mas também à violência que se apresenta na forma de constrangimentos, ameaças e coerção. Dos partidos, esperamos o que é seu dever legal, compromisso com a democracia, respeito e o apoio devido às mulheres.