Proliferação de notícias falsas, derrubadas de contas, viralização de conteúdos por robôs. Dinâmicas associadas às plataformas digitais ocupam lugar de destaque no noticiário e nas discussões públicas. Apesar disso, às vésperas das eleições, nos vemos novamente diante da ameaça de ter o pleito marcado pela dinâmica da boataria online e criminalização da divergência e do debate público.
Nenhuma das medidas adotada até aqui, seja pelo Congresso Nacional, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ou pelas plataformas digitais está isenta de críticas. E mais: nenhuma delas parece de fato conseguir enfrentar o problema. Isso se dá por sua complexidade, mas também porque falta uma correta associação entre o fenômeno da desinformação, as mutações sociais mais amplas e, particularmente, as características dos modelos de negócios das plataformas digitais. Sem considerar essas articulações, faremos discussões e medidas cosméticas ou seguiremos buscando bala de prata para pôr fim ao problema que, concretamente, consiste em uma das ameaças centrais às democracias contemporâneas.
O que temos diante de nós não é apenas a circulação de conteúdos mentirosos, como o termo “fake news” pode levar a crer. Também não se trata de um contexto em que se confere menor relevância ou em que se contesta o sentido unívoco de verdade, como pode ser depreendido da ideia de “pós-verdade”. Trata-se de uma estratégia deliberada de provocar crise comunicacional para, com isso, disputar o sentido da história, a fim de obter ganhos políticos e econômicos. É por isso que opto por tratar a questão a partir do conceito de desinformação.
Como em outros momentos, a proliferação desse tipo de conteúdo e a aceitação dele se dão em um momento de profunda crise. Crise de um sistema que não consegue mais produzir arranjos capazes de aplacar suas contradições e garantir legitimidade, o que abre margem para disputas sobre explicações e saídas para questões como o aquecimento global, o recrudescimento da violência ou mesmo sobre a pandemia do coronavírus. Crise de valores em um mundo onde o outro é apresentado como concorrente, o que ajuda a explicar ataques a políticas públicas que atendem reivindicações de determinados grupos sociais, como mulheres, LGBTQI+ e população negra. Crise do sistema político, incapaz de efetivamente se representar e superar críticas – muitas vezes justas, mas também apresentadas de forma oportunista – quanto à corrupção em seu interior. Não à toa muitos dos conteúdos desinformativos reforçam a antipolítica, se voltam contra instituições típicas dos regimes democráticos, como o Congresso no Brasil, e anunciam uma ordem de coisas baseada na destruição do espaço público. Crise da própria instituição midiática, distante da realidade, fechada à participação, denunciada por seus próprios esquemas de manipulação.
Essas questões encontram-se com a transformação das formas de comunicação na sociedade. A internet, que um dia foi vista como potencial espaço para alargar a democracia, multiplicar as vozes no debate público e garantir mais transparência, seguiu o caminho dos meios que a antecederam e se tornou também monopolizada, opaca, servil à dinâmica de constante busca pelo lucro. As plataformas digitais, como Google e Facebook, empresas que constam no topo do ranking das marcas mais valiosas do mundo, desenvolveram modelos de negócios baseados na disputa pela atenção, como forma de obter dados que são utilizados para a construção de perfis de consumo e para o direcionamento mais efetivo de mensagens, seja de publicidade ou de discursos políticos.
Pagando as plataformas, as mensagens podem, por meio de procedimentos algorítmicos invisíveis para os usuários, ser enviadas não mais apenas para públicos genéricos, mas para indivíduos. A campanha de Donald Trump, por exemplo, produzia entre 50 e 60 mil anúncios por dia, mudando idioma, palavras, cores, os quais eram enviados para públicos mapeados a partir do que eles e seus contatos publicavam nas redes.
Esse processo constante vai definindo aquilo que é apresentado ao público – e o que não é. A organização das informações do mundo, como o Google costuma apresenta como seu objetivo, é feita de forma unilateral, opaca e guiada por interesses econômicos. O YouTube, pertencente ao Google, é exemplo dessa lógica. Nas últimas eleições no Brasil, a recomendação de conteúdos extremistas, em geral pagos por agentes que se beneficiam deles e interessantes para a plataforma porque mantinham os usuários conectados, fez com que cinco dos dez canais que mais cresceram fossem dedicados a promover Bolsonaro e extremistas de direita, denunciou o The Intercept Brasil.
Como resultado dessa lógica de recomendação para conformação de públicos tão específicos, temos o reforço, quiçá a criação de determinados padrões de comportamentos. O resultado conhecido disso é que bolhas são formadas, mas significa, no fundo, que as possibilidades de diversidade do conhecimento público e do diálogo político são reduzidas.
A luta política sempre foi também uma luta por informação. As chamadas fake news são expressões dessa disputa, que se dá sem que haja regulamentação, transparência sobre formas de funcionamento ou controle social. Chegamos a um estágio em que países como Estados Unidos e Brasil são liderados por grupos que se valem da crise, do sentimento antipolítica e da utilização de toda essa nova estrutura de mediação social para disputar a população. Ou enfrentamos esses fatores de conjunto ou continuaremos a enxugar gelo.