Luiz Augusto Campos e Flávia Biroli
As eleições brasileiras de 2020 ficarão marcadas não apenas pelos efeitos da pandemia de COVID-19, mas também pelos debates em torno do financiamento das campanhas eleitorais.
A reforma eleitoral de 2015 confirmou decisão do STF que determinava a proibição de doações de empresas (pessoas jurídicas). O veto já valeu para as eleições municipais de 2016. No entanto, continuou sendo possível que um candidato financie sua própria campanha ou receba doações de indivíduos (pessoas físicas), desde que devidamente registradas e limitadas a 10% dos rendimentos brutos do doador no ano anterior.
Depois disso vieram outras decisões que têm efeito direto no financiamento das candidaturas, sobretudo aquelas regulamentando o uso do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, que são recursos públicos. É o caso das decisões de 2018, que determinam que pelo menos 30% de recursos desses fundos sejam direcionados às candidaturas femininas, dando efetividade à lei de cotas. A decisão mais recente, de 2020, estendeu o mesmo princípio para candidaturas negras, embora nesse caso não existam cotas raciais como as de gênero.
Como essas últimas decisões tocam diretamente em desvantagens – e privilégios – históricos na distribuição dos fundos, o foco acabou sendo em quem recebe os recursos. Mas tão importante quanto os beneficiários desses recursos são sua origem – se pública ou privada – e, no caso dos recursos privados, o perfil social e político dos financiadores.
O financiamento público expressa o reconhecimento de que é preciso garantir condições equitativas de competição entre os partidos. No caso das decisões de 2018 e 2020, garantir que estes não utilizem os recursos de forma enviesada em termos de gênero e de raça. Já o financiamento privado é uma espécie de bolsa de investimentos, isto é, quase sempre traz embutidas expectativas de ganhos futuros.
Enquanto nem todos podem fazer sua aposta nessa bolsa, alguns podem se dar ao luxo de investir muitos recursos. Isso configura um problema que sempre assombrou as democracias: como o princípio da igualdade pode resistir à enorme concentração de renda e à influência potencial que o dinheiro permite?
Algumas controvérsias recentes atualizam esse problema de fundo. É o caso daquela que foi amplamente comentada no início de outubro e envolve Wesley Teixeira, candidato a vereador pelo PSOL em Duque de Caxias (RJ) que recebeu recursos de nomes célebres do mercado financeiro, como Armínio Fraga e João Moreira Salles. Negro, evangélico e de periferia, Wesley sofre processo interno do partido que, desde 2008, condena repasses de doadores do mercado financeiro e, por isso, ameaça expulsar Wesley da legenda.
A resposta do PSOL traz à tona as contradições presentes na relação entre recursos financeiros e eleições, entre o mercado e a democracia representativa. O próprio Wesley Teixeira se coloca como um candidato anticapitalista e crítico à participação do capital na gestão democrática, mas entende que “o fascismo não será derrotado sem diálogo com outros setores”.
Subjacente a esse debate está o argumento, central na queda das restrições censitárias ao voto do início do século XX, de que a democracia representativa seria o espaço da igualdade entre os cidadãos.
Os princípios que regem o mercado capitalista são outros: nesse caso, as desigualdades se expressam livremente e são mesmo a norma. Quando partidos políticos como o NOVO e candidatos, em geral muito ricos, aproveitam o clima de desconfiança da política para dizer “eu não aceito financiamento público”, é bom lembrar que estão acenando com valores morais que vão na direção contrária à garantia de que as condições de disputa sejam igualitárias.
O partido é quem decide quais candidaturas serão competitivas
Às tensões de fundo entre democracia e poder econômico, somam-se outras características do sistema eleitoral brasileiro que tornam cruciais as disputas por financiamento. De um lado, a lei eleitoral brasileira incentiva a multiplicação de candidaturas para um número limitado de vagas. Apenas a título de exemplificação, cerca de 1.800 candidatos e candidatas concorrem este ano a 55 vagas na câmara de vereadores do Rio de Janeiro, padrão presente em quase todo o país.
Do outro lado, porém, o sistema proporcional de lista aberta leva as legendas a concentrarem seus investimentos em poucos puxadores de votos, capazes de engordar o quociente eleitoral de seus partidos. Isso faz com que algo entre 70% a 80% das candidaturas lançadas em uma eleição tenha pouquíssima ou nenhuma chance. Logo, recursos de campanha não servem apenas para garantir sucesso a determinadas pessoas, mas também para que uma candidatura exista na competição, isto é, chegue aos eleitores como alternativa para seu voto.
Note-se que essas regras têm efeitos particularmente dramáticos para candidaturas de grupos subalternos. Em 2018, por exemplo, homens brancos, que perfazem cerca de 24% da população brasileira, acumularam 58% de todo financiamento eleitoral. Mulheres negras (pretas e pardas) somam 26% da população nacional, mas receberam apenas 5% dos recursos de campanha no mesmo ano. Em 2016 as desigualdades foram menores, mas ainda assim expressivas. Homens brancos ficaram com 44% dos recursos de campanha, em uma ponta, enquanto em outra, as mulheres negras receberam cerca de 7%.
Os grupos em desvantagem são frequentemente aqueles que têm de enfrentar os interesses tradicionalmente constituídos dentro e fora dos partidos. E o apoio partidário é fundamental para que tenham um mínimo de competitividade, acesso a redes que fortaleçam suas candidaturas e mesmo para realizar suas campanhas com alguma segurança em localidades dominadas por milícias, por exemplo.
A violência política contra as mulheres, negros e, sobretudo, mulheres negras, tem como uma de suas formas, reconhecidas internacionalmente, a recusa a financiar suas candidaturas (violência econômica). A esta se juntam violências que envolvem ameaças à segurança física desses grupos. Em um país com índices altíssimos de violência política, os recursos de campanha podem garantir não apenas a existência pública de uma candidatura, mas sua integridade física e de seus apoiadores.
Nesse contexto institucional, decisões como a do PSOL, mencionada acima, podem acabar penalizando as candidaturas representativas de setores mais desfavorecidos da sociedade – enquanto os competidores podem ser empresários com capacidade de autofinanciamento ou redes que lhes angariam doações significativas.
O realismo político não significa, no entanto, deixar de lado a centralidade do problema. Para que sejam efetivas, as candidaturas precisam de recursos e de suporte. E estes estão disponíveis de forma desigual. Cabe à justiça eleitoral garantir que a legislação atual seja cumprida. O debate público amplo sobre financiamento é necessário para alertar sobre a incidência do poder econômico nas disputas e abrir caminho para a construção de alternativas.
*Luiz Augusto Campos é professor de Sociologia e Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e Doutor em Sociologia pelo mesmo instituto (2013). É editor-chefe da revista DADOS e coordenador de dois grupos de pesquisa: o Observatório das Ciências Sociais (OCS) e o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA)
Flávia Biroli é doutora em História pela Unicamp (2003). É professora do Instituto de Ciência Política da UnB, pesquisadora do CNPq e presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (2018-20). É autora, entre outros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil (Boitempo, 2018) e Gênero, neoconservadorismo e democracia (com Maria das Dores C. Machado e Juan Vaggione, Boitempo, 2020).