Ao menor sinal de informações falsas em grupos de WhatsApp, surgem temores envolvendo uma segunda onda de mentiras virais, repetindo a eleição de 2018. O uso de mentiras nas disputas políticas em torno da pandemia aumenta esta expectativa, mas é justamente o contraste com a pandemia que pode nos ajudar a responder à pergunta “por que 2020 seria diferente?”. As semelhanças entre a propagação de um vírus e a circulação de informações falsas que viralizam nos ajudam a entender as várias faces do contágio em redes sociais, online e offline. Elas também nos ajudam a entender as diferenças entre a viralização em escala municipal e o sempre presente fantasma da eleição presidencial de 2018.
A trajetória do coronavírus é relativamente conhecida, chegando ao país de avião, atingindo elites e caminhando para periferias, nos ônibus ou mototáxis, juntamente com trabalhadores que tiveram contato com infectados. Plataformas e aplicativos podem ser entendidos como modais de transporte, combinados cotidianamente para que uma informação caminhe por diferentes nichos e chegue a grupos consideravelmente distantes, social e economicamente, daqueles dedicados à sua produção. Muitas vezes, no entanto, estas plataformas são tratadas como ambientes estanques e independentes, influenciados apenas por algoritmos ou robôs. Seguindo o comparativo, caso os ônibus se mostrem relevantes na propagação de um vírus, simplesmente retirá-los de circulação leva o sistema de transportes a se adaptar, mas sabemos que isso não resolve o problema em sua origem e pode levar pessoas a alternativas ainda menos seguras em suas atividades cotidianas.
Se, por um lado, é fácil compreender que dez amigos que circulam frequentemente em bares podem contaminar mais pessoas do que cem amigos que não saem de suas casas, por outro, quando falamos de aplicativos como WhatsApp, todos os grupos parecem considerados como igualmente nocivos, ignorando a pluralidade de perfis, comportamentos e conexões envolvidas. Uma informação falsa em um grupo do WhatsApp pode ser como uma pessoa infectada dentro de um ônibus: sem saber se estamos numa linha integrada à Central do Brasil ou num caminho curto na área rural, isso não nos diz absolutamente nada sobre a relevância que esta informação pode ter em um cenário maior ou suas chances de viralizar. Ignorar as redes envolvidas na viralização fortalece expectativas de que estratégias de 2018 se repitam com igual impacto nas eleições municipais, por considerar apenas a quantidade de grupos ou de mensagens como critério para possível contaminação, sem levar em conta as estruturas de grupos e plataformas interconectadas.
Do vídeo que circula no YouTube a suas versões adaptadas para o WhatsApp, chegando a pessoas que não teriam acesso à internet sem o zero rating (acordo que faz com que pessoas usem redes sem desconto na franquia de dados), há escalas, plataformas e atores que cumprem funções diferentes para que a viralização ocorra. A rede de produtores de conteúdo com milhões de seguidores no YouTube foi beneficiada pela maior parte dos links em grupos do WhatsApp nos levantamentos de 2018, em campanhas para aumento de engajamento e consequentemente vantagens na adaptação ao algoritmo de visibilidade da plataforma. Por sua vez, grupos do WhatsApp podem ser alimentados com militantes especializados através da distribuição de links em aplicativos como Telegram, mais amigáveis à automatização, criptografados e onde se pode reunir até 200 mil pessoas. Todos esses exemplos mostram que o funcionamento destas redes é interdependente.
Sem algoritmos de visibilidade ou ferramentas de microtargeting em seus grupos, o WhatsApp talvez seja o aplicativo em que esta discussão é mais urgente. A polêmica sobre retorno a escolas e cultos nas igrejas pode ser útil à compreensão da dinâmica e estrutura do aplicativo. Cada escola pode ter entre seus alunos integrantes de diferentes igrejas e, por sua vez, há pessoas de outras escolas em cada uma destas novas igrejas, marcando a composição de uma rede que cresce a cada novo nicho considerado (universidades, bairros, condomínios). Aí reside o perigo, uma vez que pessoas constituem pontes conectando os grupos em que participam e colocando alguns deles em posições centrais, facilitando a contaminação (a igreja que conjuga o maior número de pontes para de escolas seria central, por exemplo). Esta é uma das lógicas de viralização em redes de grupos de WhatsApp.
No caso das eleições, infectar um grupo numa posição central e com pessoas suscetíveis a encaminhar mensagens da campanha faz com que virais possam se espalhar rapidamente. Grupos de apoiadores segmentados são utilizados como pontes para grupos centrais, com maior alcance e possibilidade de distribuição, interferindo na probabilidade de informações viralizarem, particularmente nos casos em que disparos de mensagens são feitos mirando perfis específicos. Longe de exercer igual poder persuasivo em todos os grupos, informações tornam-se virais adequando-se a nichos específicos que, em cenários polarizados, podem replicá-la e influenciar eleições e plebiscitos. A falta de proteção aos dados pessoais abre flancos para inserção de nichos mais propensos a acreditar em informações falsas nestes grupos. Os mesmos traços de personalidade utilizados pela Cambridge Analytica no caso das eleições norte-americanas de 2016 já foram analisados para entender viralização de petições em grupos de discussão fechados, em que um mesmo conteúdo pode viralizar ou ter impacto totalmente irrelevante de acordo o perfil dos primeiros grupos em que é lançado. Este é o motivo pelo qual o uso de dados pessoais, e não propriamente o conteúdo das mensagens em si, estar no cerne de escândalos como o da CA.
Se um grupo de WhatsApp estiver cheio (256 pessoas) e cada integrante estiver disposto a encaminhar a mensagem para um outro grupo também cheio, alcançamos 65,5 mil pessoas na primeira rodada de encaminhamentos e 16,7 milhões na segunda. Diferentemente do Facebook, em que 16 milhões de pessoas podem perder acesso a uma publicação que compartilharam caso ela seja excluída, no WhatsApp, cada um destes 16 milhões possui uma cópia do conteúdo em seu próprio celular, e a qualquer momento pode colocá-lo de volta em circulação nas redes que bem entender. Outra diferença importante é a ausência de algoritmos de visibilidade que limitem a visualização do conteúdo a perfis específicos, fazendo com que, independente do quão negativa ou desinteressada tenha sido a sua reação a uma mensagem, você seja exposto novamente e replique conteúdos similares em seu celular para acessá-los.
As estratégias de 2018 foram marcadas pelo casamento entre replicação/armazenamento de informações falsas, crescente polarização eleitoral, redes propensas à viralização de conteúdo, encaminhamentos sistemáticos por parte de apoiadores em um aplicativo extremamente popular e opacidade frente às autoridades públicas. Confirmamos a relevância de grupos centrais com diferentes nichos (ambos identificados utilizando algoritmos de análise de redes) na viralização de informações falsas no WhatsApp na eleição presidencial.
No entanto, 2020 apresenta um cenário essencialmente diferente. Quando cada município tem candidatos próprios para suas prefeituras, a definição de inimigos em comum em leituras polarizadas, como candidatos a governador ou presidente, é mais difícil. Embora políticas das prefeituras estejam relacionadas à pandemia e tenham conexão com temas da discussão nacional, inserir os diversos candidatos a prefeito em narrativas contra a China, meio ambiente ou fraude nas urnas, temas que têm sido bastante recorrentes, requer um esforço maior do que retomar as narrativas antipetistas e atacar figuras como o ex-presidente Lula. Os custos da utilização de redes nacionais de apoiadores pode não ser razoável para atingir um público local e a disposição de integrantes para bombear em suas redes informações sobre a eleição de outro município tende a ser limitada.
Igrejas, por exemplo, podem ter grupos relacionados a eventos ou denominações nacionais, estaduais e municipais, interconectados e em constante interação, que possuem pontos de discussão em comum durante uma eleição presidencial. Um grupo nacional pode facilitar o trânsito de informações e sua rápida viralização em uma série de grupos locais, auxiliando o investimento em estratégias coordenadas. Mas o inverso, com milhares de municípios e seus próprios candidatos arcando com o esforço de lançar informações nacionalmente, não faria sentido. Em síntese, colocar em funcionamento aquela engrenagem de disseminação se torna mais difícil.
Adaptações para incluir conjuntos de partidos no dualismo antipetista é uma estratégia que se encaixa neste cenário. Atualmente, imagens e memes em que conservadores são instados a observar os dois primeiros números dos candidatos e descartar todos os que estão na lista de partidos “comunistas” circulam em diversos grupos, garantindo um atalho fácil para influenciar escolha eleitoral, que pode ser distribuído em vários grupos locais de modo coerente.
Além da diferença na escala da eleição, políticas específicas ligadas a estrutura da rede (como combate à inserção de pessoas em grupos a revelia, dificultando a constituição de grupos de campanha em posições centrais na rede de grupos interconectados) podem encarecer e dificultar consideravelmente investimentos deste tipo em uma campanha municipal. Precisamos considerar ainda as restrições nas possibilidades de encaminhamento de mensagens virais no aplicativo, que não resolve o problema (como mostrado no exemplo em que cada membro do grupo encaminha a mensagem para um novo grupo), mas reduz a velocidade e alcance da viralização.
Como na pandemia, veículos úteis ao trânsito rápido em escala nacional podem ser inviáveis e incompatíveis com os fluxos necessários no âmbito local. Na eleição presidencial, grupos circulavam links para redes de youtubers com milhares ou milhões de seguidores: quantos candidatos, nos cerca de 5.570 municípios do país, podem instrumentalizar uma rede como essa? Há adaptações dessa tática, como a denúncia falsa contra Guilherme Boulos usada por Celso Russomano no debate no UOL/Folha, que foi para outras redes a partir de um youtuber, na última semana. Mas quantos candidatos podem associar esta rede de produção constante a centenas de grupos segmentados no WhatsApp, com apoiadores propensos a compartilhar sistematicamente conteúdo que recebem e servir como pontes para outros grupos? E, mais importante, em quantos municípios a eleição é polarizada o suficiente para que um nicho específico influenciado por estas estratégias possa ser decisivo no resultado final do pleito?
O segundo turno e a mudança da pauta dos militantes de extrema direita, ainda ocupados entre a vacina “chinesa” e a defesa de Trump na eleição estadunidense, podem reforçar polarizações e campanhas coordenadas em diversas capitais. Sem dúvida, há espaço para surpresas em uma eleição municipal na qual candidatos são escolhidos perto da data da votação, disputando atenção com a pandemia e adaptando os eventos de campanha, em que a política nacional reverbera o impasse envolvendo uma figura aclamada como líder da direita internacional e que se recusa a reconhecer sua derrota eleitoral. É nesta conjuntura que as possibilidades de apropriação de plataformas redes sociais online e aplicativos estão inseridas, e inovações serão testadas e adaptadas, em um cenário radicalmente diferente do que viu florescer estratégias de campanha nacional pelo WhatsApp em 2018, unindo grupos do país inteiro em torno de um inimigo comum.
*João Guilherme Bastos dos Santos é pesquisador posdoc do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD) no Laboratório de Dados (C2D2). Pesquisas sobre campanhas de desinformação em redes sociais online apresentadas no European Consortium for Political Research (ECPR), Association of Internet Researchers Symposium (AoIR), European Communication and Education Research Association (ECREA), entre outros. Palestrante convidado em eventos relacionados promovidos pela Frente Parlamentar Digital e pela Câmara dos Deputados (falas disponíveis online), além da primeira plenária do Comitê Gestor da Internet no Brasil em 2020. Doutor em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com período sanduiche sob orientação de Stephen Coleman na University of Leeds (UK). Membro do Comitê Científico da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política.