A esquerda brasileira sofreu em 2016 sua derrota eleitoral mais significativa desde o início do milênio. Essa derrota esteve centrada no PT, mas não se limitou a ele. O PT perdeu 59,4% das suas prefeituras, passando de 630 para 259, praticamente o mesmo número que detinha em 2002 quando Lula da Silva foi eleito presidente. Porém, a derrota em 2016 foi também do PSOL e, em parte, de outras forças de esquerda. Em 2016, o PSOL, com Marcelo Freixo, conseguiu a façanha de disputar o segundo turno na cidade do Rio de Janeiro. Isso chamou a atenção para o partido, mas não relativizou o fato de ter feito apenas duas prefeituras. Ainda assim, a derrota do PSOL foi menor do que a do PT porque conseguiu eleger vereadores de destaques em diversas cidades. Por fim, o PSB e o PDT acabaram sendo os partidos na esquerda que se saíram melhor com reduções (PSB) ou pequenos aumentos (PDT) no número de prefeituras.
A explicação para o fracasso da esquerda nas eleições está ligada ao curto período entre o impeachment de Dilma Rousseff e o escândalo da JBS. Nesse hiato, PMDB e PSDB usufruíram de certa legitimidade entre os eleitores e apareceram como um “campo ético” em oposição à esquerda. Essa visão desmoronou a partir da operação da Procuradoria da República contra a JBS, que teve como alvos Temer e Aécio Neves. A partir daí houve uma desmoralização do campo centrista que ainda não chegou ao final. Esse aggiornamento da opinião dos eleitores pode permitir uma recuperação da esquerda em 2020, mas ainda é cedo para dizer se ocorrerá de fato.
Algumas eleições locais irão determinar a força que a esquerda terá a partir de 2020: na cidade de São Paulo, do Rio de Janeiro e em capitais importantes do Nordeste como o Recife, Fortaleza e Salvador. As eleições paulistanas são o maior indicador tanto das potencialidades quanto dos problemas da esquerda nesta eleição. O PT governou a cidade entre 2013 e 2016 e foi derrotado sem que houvesse um segundo turno. O PT tem, neste ano, um candidato que representa todos os problemas não resolvidos do partido. Jilmar Tatto é a expressão da máquina política, um candidato com bases na região sul da cidade, mas incapaz de apresentar um discurso de renovação. Tatto tem poucos apoios entre a intelectualidade progressista, o que provavelmente limitará sua capacidade de crescimento. Ainda mais relevante, Guilherme Boulos surge no horizonte fazendo sombra ao candidato do PT e com apoio inicial de figuras da esquerda como Frei Betto, André Singer, Chico Buarque e Caetano Veloso. Assim, coloca-se o primeiro desafio da esquerda nas eleições: conseguir recuperar espaço com uma candidatura em São Paulo. Os recursos para fazê-lo estão divididos: de um lado, o PSOL parece ter apoio na intelectualidade e na classe média, ao passo que o PT tem recursos do fundo eleitoral e tempo na TV. A questão é se essa divisão continuará e se impedirá uma recuperação possível da esquerda em 2020.
O Rio de Janeiro tem uma situação completamente diferente. A esquerda jamais foi forte na cidade, apesar de ali ter havido vitórias dos ex-presidentes Lula e Dilma. O mais importante é que há uma diferença qualitativa entre Rio de Janeiro e São Paulo. A capital paulista oscila entre o petismo e o antipetismo, ao passo que o Rio teve hegemonia do PMDB e, ao que tudo indica, tem atualmente uma hegemonia do bolsonarismo em aliança com o judiciário. O período pré-eleitoral mostra o dano que essa aliança é capaz de produzir: a remoção de um governador antes de ele se tornar réu (não vai aqui nenhuma defesa do Witzel); a transformação de Eduardo Paes em réu a menos de 90 dias das eleições e, por fim, a operação contra o advogado do ex-presidente Lula que recebeu o protesto da OAB. Assim, no Rio de Janeiro se coloca um desafio diferente à esquerda: se a forças hegemônicas no estado são capazes de usar a coerção institucional e extra institucional contra os seus adversários.
Vale atentar para algumas das capitais do Norte e Nordeste. Destaco aqui Belém, Salvador, Recife e Fortaleza. Em todas o bolsonarismo perdeu as eleições e a esquerda tem candidatos fortes de diferentes partidos. O PT em Salvador, Recife e Fortaleza. O PSOL em Belém e o PSB em Recife. Em cada uma dessas cidades o bolsonarismo terá candidato forte e a capacidade de a esquerda de se unir em torno de uma candidatura determinará sua resiliência frente ao bolsonarismo. Apenas em Belém PSOL e PT já estão aliados.
A esquerda ainda enfrentará dois temas que determinaram sua derrota em 2018: as corporações de segurança e os grupos religiosos. Na eleição de 2018, candidatos na área de segurança pública mostraram viabilidade eleitoral. A maior parte desses candidatos se identifica com o bolsonarismo. Em pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e publicada no dia 7 de agosto de 2020, 41% dos praças dizem apoiar o presidente. A expectativa de um número grande de candidatos policiais militares já é real. A pergunta é se todas essas candidaturas irão reforçar um campo antiesquerda ou se será possível pensar em candidaturas de membros da corporação militar na esquerda. Ainda é cedo para ter uma visão completa, mas a candidatura da Major Denice para prefeita de Salvador pelo PT pode indicar uma adaptação à realidade dos candidatos corporativos na área de segurança. A ver.
Por último, temos a questão religiosa. Houve de fato um deslocamento dos grupos religiosos na direção da direita. Mas é possível sustentar que não há nada de estrutural nesse posicionamento. Os ex-presidentes Lula e Dilma tiveram o apoio das principais lideranças neopentecostais nas eleições que os consagraram presidentes. A ruptura entre a Igreja Universal e o Partido dos Trabalhadores deu-se durante o impeachment de Rousseff. No entanto, mudanças importantes desde então tornam improvável uma reorientação de curto prazo dos evangélicos, hoje com agendas conservadora e corporativista mais consolidadas. Ainda assim, a chance de os evangélicos se posicionarem em bloco como fizeram em 2018 parece bastante reduzida e o mais provável é que partam para um conjunto de acordos locais, uma vez que enquanto religião o que os caracteriza é uma forte descentralização.
Assim, ainda que o cenário mais provável para a esquerda nas eleições de 2020 seja uma recuperação em relação a 2016, essa recuperação depende de diversas circunstâncias, a mais importante delas sendo a capacidade de o PT entender a diminuição de seu papel na esquerda e reforçar os candidatos promissores do campo. Até este momento, o PT não tem nenhum candidato em primeiro lugar nas capitais. Apenas em Belém, com a coalizão com o PSOL e a candidatura de Edmilson Rodrigues. Ao mesmo tempo, PSOL, PSB e PDT têm candidaturas com chances reais de vitória. Entender esse novo aspecto de uma frente única informal eleitoral será o aspecto decisivo para a recuperação da esquerda em 2020.