A campanha para as eleições municipais de Porto Alegre em 2020 necessita ser analisada a partir de um conjunto de aspectos que a torna muito particular: a história eleitoral da cidade; as características das candidaturas em disputa; o fato de que, pela primeira vez, desde sua fundação, o PT não é cabeça de chapa; a presença de Manuela D’Ávila como candidata do PCdoB, coligado com o PT, que aparece na liderança da intenção de votos nas últimas pesquisas.
Nas eleições presidenciais de 2018, Bolsonaro ganhou em 2º turno em Porto Alegre, com 56,85% dos votos, contra 43,15% dados a Fernando Haddad. Considerando todo o estado, a vitória do capitão foi ainda maior: ele obteve 63,24 % contra 36,76% dados para o candidato petista. Os resultados expressivos indicam uma tendência conservadora no estado e em sua capital. Isso é verdade, mas não é toda a verdade, pois o estado teve uma história petista significativa.
Porto Alegre foi governada pelo PT por 16 anos, a partir da eleição de Olívio Dutra, em 1988. Durante este período, teve um vigoroso orçamento participativo e sediou quatro edições do Fórum Social Mundial (2001/2002/2003/2005), tornando-se internacionalmente conhecida por ser um município com experiências inovadoras de esquerda. O Rio Grande do Sul elegeu duas vezes governadores do PT: em 1998, Olívio Dutra e, em 2010, Tarso Genro, este último quando já não havia prefeitos do partido na capital.
Mesmo nas derrotas do PT antes de 2018 no estado, os resultados eleitorais mostram uma Porto Alegre ainda eleitora bastante fiel ao partido. Em 2002, o governador eleito foi do PMDB, mas o PT ganhou em Porto Alegre (50,1% versus 49,8%). O mesmo aconteceu em 2006, quando o PSDB se elegeu mas, em Porto Alegre, Olívio Dutra perdeu por centésimos. A partir de 2014, o PT começou a mostrar fragilidades cada vez maiores. Naquele ano, Tarso Genro não se reelegeu e, em 2018, a esquerda não chegou ao 2º turno nas eleições para governador.
Em eleições para prefeito na capital, após 16 anos de hegemonia, a esquerda não chegou mais ao poder. Nas quatro eleições que se sucederam, em duas chegou ao 2º turno. Em 2016, pela primeira vez, desde 1988, a esquerda não chegou ao 2º turno nas eleições para prefeito de Porto Alegre.
Se, por um lado, não há dúvidas de que a esquerda tem perdido espaço na política gaúcha, particularmente em Porto Alegre, seguindo uma tendência nacional, por outro é preciso considerar esta história de vitórias, que forjou uma memória eleitoral e um núcleo duro de votos em partidos de centro-esquerda e esquerda que não podem ser menosprezados em qualquer eleição na cidade.
Cenário eleitoral em Porto Alegre em 2020
Porto Alegre atualmente é governada por um prefeito do PSDB, Nelson Marchezan Júnior, filho do líder do governo na Câmara de Deputados na presidência do General Figueiredo (1979-1980) e ele próprio ex-deputado federal. Ele conseguiu a façanha de juntar o conjunto dos vereadores da cidade contra si em um processo de impeachment cujas razões são tão políticas quanto têm sido as da grande maioria dos processos de impeachment no Brasil.
Mesmo assim, é candidato à reeleição, junto com outros 12 candidatos. Além dele, três estão realmente na disputa. Em um arco da esquerda para a direita: Manuela D’Ávila, da aliança PCdoB-PT; Sebastião Melo do MDB e José Fortunati do PTB.
Em pesquisa do Ibope publicada em 29/10, Manuela apareceu com 27% das intenções de votos, Marchezan Júnior com 14%, Melo com 14% e Fortunati com 13%.
Antes de focar na candidatura de Manuela e suas circunstâncias, vale uma rápida mirada nos três outros candidatos. Primeiro, o atual prefeito, que tem potência eleitoral por sua posição, mas pode ser impedido de concorrer, se a Câmara votar seu impeachment antes das eleições.
Melo, do MDB, é atualmente deputado estadual, tendo sido vice-prefeito na administração Fortunati e vereador por duas legislaturas. Na última eleição para prefeito, perdeu no 2º turno para Marchezan Júnior.
E Fortunati, que foi líder sindical, fundador do PT, vice-prefeito pelo PT, prefeito pelo PDT e atualmente é candidato pelo PTB. Depois de romper com o PT, por não conseguir a candidatura para prefeito, Fortunati tem buscado, com algum sucesso, partidos que lhe dêem legendas para concorrer. Tem história na cidade e, inclusive, articula uma certa nostalgia dos eleitores de seu tempo de esquerda.
Frente a este trio de homens políticos está Manuela D’Ávila. Não é a única mulher candidata – há também Fernanda Melchiona, do PSOL, e Juliana Brizola, do PTD – nem é a primeira vez que se candidata a prefeita: em 2008 ficou em terceiro lugar e, em 2012, ficou em segundo, quando Fortunati se elegeu em 1º turno.
Também em eleições anteriores mulheres com carreiras políticas sólidas foram candidatas à prefeitura, como Maria do Rosário, do PT, e Luciana Genro, do PSOL. Entretanto, esta campanha está sendo muito particular. Manuela possui longa carreira política, apesar de ter apenas 39 anos (foi vereadora de Porto Alegre com 22 anos) e tem sido uma campeã de votos. Nas eleições de 2006 e 2010, foi a deputada federal mais votada do estado, e na última teve 8.06% dos votos válidos para deputado federal. Em 2014, candidatou-se a deputada estadual e foi a mais votada do estado. Não se pode deixar de pontuar que Manuela foi candidata a vice-presidenta da república na chapa com Fernando Haddad nas últimas eleições
Na atual campanha, sua história de vitórias eleitorais somada ao fato de ser a única, entre os candidatos com reais possibilidades de vitória, que faz uma campanha antibolsonarista radical, provocou violentas ameaças a sua integridade física e a de sua família, bem como fakenews que anunciam um pretenso comunismo venezuelano, acusações de pedofilia e atitudes morais inaceitáveis para uma mulher.
Aqui, cabe mencionar que Fernanda Melchiona, do PSOL, também representa o antibolsonarismo radical. É uma jovem que saiu de seu primeiro mandato de vereadora para a Câmara de Deputados com excelente votação. Deve provocar na extrema-direita o mesmo ódio que Manuela provoca, mas não tem chances de se eleger em Porto Alegre.
Os ataques a Manuela, na verdade, começaram muito tempo antes e se intensificaram a partir de sua candidatura à vice-presidenta na chapa de Fernando Haddad, em 2018. Afirmar que Manuela sofre ataques machistas, sexistas, pornográficos a si e a sua família, não a diferencia de muitas outras mulheres que foram para a frente da luta política na esquerda.
A história da ex-presidenta Dilma Roussef é o melhor exemplo. Também não seria verdade afirmar que ataques misóginos são monopólio da direita ou da extrema-direita. Vetustos senhores, de todos os matizes ideológicos, são rápidos em apontar a condição de mulher de suas companheiras, quando sentem-se ameaçados e querem desqualificá-las.
Mas é necessário pontuar que os ataques machistas são contra mulheres de esquerda. Nas últimas eleições gerais, um grupo significativo de mulheres de direita, apoiadoras de Bolsonaro, foram eleitas deputadas federais, sempre elogiadas pela condição de mulheres “exemplares”.
Mesmo considerando este cenário, a violência de gênero contra Manuela D’Ávila tem uma natureza própria do momento político que estamos vivendo. Desvenda a relação entre o projeto (des)democratizante, fundamental para que alguma forma de neoliberalismo se concretize, e o patriarcado branco estruturante que garante o quadro das desigualdades e dos privilégios. Mais do que nunca uma repatriarcalização radical é central em um projeto do tipo que se trata de levar a efeito no Brasil. E o Brasil não está sozinho, mas isso é tema para outro artigo.
A Manuela que é desqualificada pelo discurso da extrema-direita não é a Manuela mãe, mas a Manuela mãe que deveria ficar em casa cuidando da filha em vez de fazer política. Não é a mulher que veste rosa, mas a que veste a cor que quiser e luta pelo direito de homens e mulheres terem autonomia sobre seus corpos. Manuela representa, no imaginário da extrema-direita, a ameaça à família “natural”, defendida pelo Chanceler e pela Ministra Damares Alves, entre outros próceres desta república.
Não interessa se a mulher protegida por este governo mata o marido e manda as filhas fazerem sexo com as visitas, se ela mesma faz com os filhos que adota, ou se a pretensa líder de um movimento de extrema-direita autodenominado os “300 do Brasil” (na verdade, nunca passaram de 30) desafia as autoridades constituídas e promove atos contra a democracia. Estas mulheres dão alma ao patriarcado, até seus atos desvairados reforçam a imagem que querem passar de mulheres que não cumprem sua “divina missão”.
Mesmo vítima de ataques violentos, Manuela deve chegar ao 2º turno e terá, possivelmente, de enfrentar Fortunati, Melo ou o atual prefeito. Nenhum dos três deverá fazer uma campanha claramente bolsonarista no 1º turno, o que vem marcando as manifestações do atual vice-prefeito Gustavo Paim, do PP, e de Valter Nagelstein, do PSD, ambos sem qualquer chance eleitoral.
É mister chamar a atenção que estes discursos misóginos absurdos geralmente não partem dos candidatos de centro-direita ou mesmo de direita, eles circulam nas redes sociais, sendo de responsabilidade de outros interlocutores, que municiam cabos eleitorais, eleitores e os próprios candidatos em situações especiais.
Destarte as brigas comezinhas entre Fortunati e Melo, devem se apoiar no 2º turno e tomar a posição da direita para obter o apoio da família presidencial. Portanto, há um dilema para o adversário de Manuela e seus apoiadores no 2º turno: ou se perdem em um centro anódino, muito parecido com o que foi a administração de Marchezan Júnior, ou reforçam o discurso agressivo, misógino, anticomunista contra Manuela, buscando o apoio da classe média bolsonarista de raiz, que ainda resta na cidade. O 2º turno em Porto Alegre não vai ser fácil.
*Céli Pinto é cientista política e Professora Emérita da UFRGS