Recorde de registros de candidatura impõe desafios à Justiça Eleitoral
Mais de meio milhão de registros de candidatura foram submetidos à Justiça Eleitoral em 2020. O número abrange postulantes a prefeito (19.100), vice (19.129) e vereador (504.496) em todo o País. Os dados foram obtidos no domingo (27), na plataforma DivulgaCandContas, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas os quantitativos finais serão maiores. Embora o prazo para registro tenha se encerrado no sábado (26), há ainda uma janela para aqueles que foram indicados em convenção, mas não constaram das atas. De todo modo, constata-se um aumento de mais de 45.400 candidatos em relação às Eleições 2016, quando foram submetidos 496.887 registros (16.565 a prefeito, 16.950 a vice e 463.372 a vereador). As causas desse crescimento são bem conhecidas. Já as potenciais consequências não recebem a atenção devida.
Comecemos pelas causas. Em 2017, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 97, que acabou com as coligações proporcionais e criou uma cláusula de barreira, aplicável aos partidos já desde 2019. A intenção do legislador era diminuir o número de legendas, restringindo progressivamente o acesso delas ao fundo partidário e ao tempo gratuito de rádio e televisão, de acordo com o percentual de votos que obtêm nas eleições para a Câmara de Deputados. Mas, imediatamente, a alteração incentivou a disputa por capital político.
Os partidos correm para se prepararem para as inevitáveis negociações que envolverão as incorporações partidárias a partir de 2023. Elas determinarão quais legendas desaparecerão da vida política brasileira. Como prefeitos e vereadores são cabos eleitorais dos futuros candidatos a deputado nas eleições de 2022, este ano as legendas colocaram em prática o plano de expansão, regularizando diretórios e órgãos municipais há muito desativados, a fim de lançarem o máximo de candidatos a que têm direito.
Essa explosão de candidaturas testa os limites de absorção de novas demandas das eleições brasileiras, altamente institucionalizadas. Diferentemente do que ocorre em outros países, aqui a inclusão do nome de cada candidato na urna é precedida de uma verdadeira ação judicial, que tem de ser processada e julgada. Especula-se que parte considerável das candidaturas a vereador registradas este ano seja juridicamente insustentável, pois a pandemia teria dificultado que os diretórios cooptassem novos filiados e filiadas, aptos a lançarem-se como candidatos e candidatas viáveis. Mas isso pouco altera o quadro, pois a Justiça Eleitoral tem que se manifestar sobre se cada um dos pretensos candidatos reúne todas as condições previstas na lei e na Constituição.
A lei, aliás, determina que todos os pedidos de registro sejam julgados pelo juiz eleitoral e pelos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) até vinte dias antes do primeiro turno. Ocorre que, em razão de outra reforma legislativa, promovida pelo Congresso em 2015, o cumprimento desse prazo se tornou impossível em casos não triviais, que exijam provas que demandem tempo para serem produzidas, por exemplo. Com a finalidade declarada de baratear os custos das campanhas (e a não declarada de dificultar a entrada de novos nomes na política), a mini reforma de 2015 encurtou o tempo de que a Justiça Eleitoral dispõe para julgar os pedidos. Os cerca de três meses que separavam a submissão dos registros da data das eleições se reduziram a um mês e vinte dias.
Outra mudança de 2015 pode revelar-se explosiva quando combinada ao encurtamento desse tempo e aos recordes atuais de candidaturas: se o registro de prefeitos e vices for negado pela Justiça Eleitoral depois das eleições, e eles tiverem sido eleitos, a votação tem que ser repetida no município. A intenção parece justificável. O arranjo anterior, que permitia que o segundo colocado tomasse posse, partia da premissa contrafactual duvidosa de que, se a chapa eleita não tivesse constado da urna, o eleitor teria votado nas demais na mesma ordem como votou. Não há nenhuma evidência de que seria assim.
Mesmo que justificada, a nova regra injeta carga extra num sistema já sobrecarregado. Toda decisão judicial que afasta candidatos eleitos tem elevados custos sociais, políticos e econômicos. Some-se a isso o fato de que, no caso do indeferimento do registro de prefeitos eleitos, a anulação da eleição anterior pode aparecer, aos olhos da opinião pública, como consequência da incapacidade da Justiça de julgar processos a tempo, ou, pior, como uma intervenção deliberada e indevida nos resultados já divulgados. No cenário de descrédito institucional e democrático que vivenciamos, caso essa medida tenha que ser colocada em prática, vai ser difícil convencer alguns grupos de que, boas ou ruins, são essas as regras do jogo escritas pelo Congresso.
*João Andrade Neto é doutor em Direito pela Universität Hamburg (UHH), professor de Direito Eleitoral da Faculdade Padre Arnaldo Janssen e da PUC Minas, Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).