Justiça à justiça eleitoral

Justiça à justiça eleitoral

Fábio Kerche e Marjorie Marona*

A pouco mais de um dia do final das eleições, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ainda se vê às voltas com o aperfeiçoamento do processo de contabilização e divulgação dos votos, que gerou uma onda de críticas no final do primeiro turno – pelo atraso excessivo se comparado com o seu desempenho em pleitos anteriores.

Nesta eleição, o TSE inovou também na concentração da divulgação dos resultados, antes realizada de forma descentralizada por cada um dos Tribunais Regionais Eleitorais nos estados. Essa decisão, no entanto, não se mostrou totalmente acertada. Em defesa do novo modelo, o ministro Barroso, presidente do TSE, argumentou que a dificuldade ocorrera em razão de problemas com um novo “supercomputador”, assegurando, no entanto, que não houvera qualquer prejuízo em relação à segurança do processo. Barroso ressaltou que mesmo um ataque hacker havia sido impedido, o que confirmaria a confiabilidade das urnas eletrônicas.

Não foi suficiente para travar os apoiadores de Bolsonaro, que se apressaram a levantar dúvidas sobre a lisura do pleito, revigorando o discurso do próprio presidente, que já afirmou que na eleição em 2018, da qual saiu vencedor, ocorreram fraudes. Alinhados à estratégia de Trump em face das últimas eleições nos Estados Unidos, Bolsonaro e seu secto colocam em suspeição a segurança das urnas e deixam sempre uma porta aberta para reclamar de eventual derrota – ou, simplesmente, para ampliar os ataques às instituições democráticas deste país.

O estratagema é primário, mas perigoso: uma das regras de ouro da democracia é que o derrotado aceite o resultado das eleições, demonstrando assim o respeito às balizas do jogo democrático. O questionamento leviano do resultado de uma eleição coloca em risco, portanto, não apenas o pleito, mas a própria democracia. Pode se supor que se Aécio Neves (PSDB) tivesse observado essa regra em 2014, quando perdeu as eleições presidenciais para Dilma Rousseff (PT), talvez não estivéssemos em uma situação política tão delicada quanto a atual, em que da moda Bolsonaro fez tendência.

O sistema eleitoral brasileiro é seguro e confiável. É preciso reafirmar. Não há qualquer indício de fraude no resultado das eleições ou de vulnerabilidade das urnas eletrônicas que desse lugar a ela. Somente os adeptos de teorias conspiratórias ou aqueles que veem algum ganho político estratégico em colocar em dúvida o nosso sistema seguem criticando o processo eleitoral, sob o prisma da segurança das urnas ou fidelidade do resultado. Mas a assertividade em relação a este ponto não nos desobriga de lançar luzes sobre uma série de outros aspectos da governança eleitoral que merece críticas.

E disso as eleições deste ano dão, de fato, testemunho. Findo o primeiro turno, nos deparamos com todos os problemas que o ativismo judicial eleitoral – a que já tivemos oportunidade de nos referir – poderia apresentar. A insegurança gerada pela atuação daqueles que deveriam zelar pela estabilidade e lisura do processo eleitoral resultou em um efetivo de mais de 700 candidatos que ganharam nas urnas, mas não sabem se poderão tomar posse, em razão de pendências judiciais. A contrapartida é que seus eleitores também não têm segurança sobre os efeitos do seu voto. Além dos 305 prefeitos e 98 vice-prefeitos, 363 vereadores estão com as suas candidaturas (vitoriosas) sob judice.

Um dos casos que mais chama a atenção, por ser em uma capital e por envolver um nome de projeção nacional, é o de Lindbergh Farias do PT do Rio de Janeiro. Mesmo sendo o mais votado entre os candidatos de seu partido para a Câmara Municipal da capital fluminense, o ex-senador ainda aguarda recurso no TSE para saber se tomará posse em janeiro. Os danos, contudo, podem ser contabilizados por Lindbergh desde a primeira decisão, tomada por um juiz eleitoral. Disto dão conta o total de votos recebidos por ele que, apesar de suficientes para assegurar uma vaga no legislativo, foram em número muito inferior ao esperado, considerando sua trajetória. Pelo menos em parte é possível supor que a insegurança gerada pela decisão judicial acerca da viabilidade de sua candidatura reorientou muitos de seus potenciais eleitores.

Um outro bom exemplo das intempéries que a justiça eleitoral pode impor, discricionariamente, ao desenvolvimento equilibrado da disputa deu-se em Porto Alegre. O então candidato à prefeitura, José Fortunati (PTB), que vinha embolado em segundo lugar nas pesquisas, desistiu da disputa às vésperas do primeiro turno, em razão de uma decisão judicial de cassação de seu vice-prefeito. A sua retirada do pleito (induzida pela justiça) reorganizou o jogo eleitoral na capital gaúcha a favor de Sebastião Mello (MDB), e pode ter sido decisiva para que um segundo turno ocorresse entre ele e Manuela D’Ávila (PCdoB), que vinha aparecendo com vantagem nas pesquisas até aquele momento.

A boa notícia é que, no agregado, houve uma ligeira melhora no número de pendências judiciais de candidatos eleitos, quando comparado com as eleições municipais de 2016 – 12,2% a menos. É pouco, mas é um avanço. Por enquanto, seguimos com 13 candidatos que estão na disputa no segundo turno e que enfrentarão concorrentes com pendências na justiça eleitoral. O certo é que se a justiça eleitoral brasileira merece ser criticada não é pela alegada falta de segurança das urnas ou qualquer condução fraudulenta dos resultados. Até na crítica devemos ser justos.

Ufanismo até certo ponto: a Justiça Eleitoral no Brasil

Ufanismo até certo ponto: a Justiça Eleitoral no Brasil

Houve uma certa onda de ufanismo em relação à Justiça Eleitoral brasileira frente às incertezas da eleição presidencial nos Estados Unidos. Como lá não existe uma instituição nacional encarregada de regular o pleito, muitos lembraram de nossos juízes e promotores eleitorais e do seu papel de assegurar a observância das regras eleitorais. Alguns vibraram com o aparente contraste: no país do Norte, instabilidade e atrasos gerados pela baixa institucionalização; no país latino-americano, regularidade e agilidade assegurados por um modelo de governança eleitoral institucionalizado.

Contudo, é possível argumentar que, pelo menos nestas eleições, estamos testemunhando uma espécie de americanização do pleito. Graças aos variados instrumentos processuais, múltiplos pontos de acesso à justiça eleitoral e perfil dos legitimados à propositura das ações, diferentes interpretações de juízes e promotores sobre vários aspectos do processo eleitoral geram certa instabilidade também no Brasil.

O quadro foi agravado pela redução do tempo da campanha, que aprofunda o descompasso entre as dimensões política e jurídica das eleições. Em regra, não é possível vencer todas as instâncias de revisão judicial no período em que decorrem as eleições – muitas vezes, as decisões dos juízes de primeira instância geram efeitos irreversíveis. Na prática, embora a justiça eleitoral seja uma instituição com abrangência nacional, as decisões são tomadas por milhares de juízes, localmente.

Desde o registro das candidaturas, passando por cada ato da campanha eleitoral e o julgamento das contas, quase tudo pode ser objeto de disputa judicial. Nem mesmo o dia da votação escapa. Ao que tudo indica, os eleitores de Macapá terão que esperar por mais tempo para escolher seus representantes enquanto os dos outros municípios do Amapá, que enfrentam os mesmos problemas de falta de energia da capital, vão às urnas no próximo domingo. Na justiça eleitoral, o que vale para uns, nem sempre vale para outros.

Já no marco zero da construção de uma candidatura a justiça eleitoral apresenta-se. Se os partidos políticos são o primeiro filtro na construção da representação eleitoral no Brasil, já que as candidaturas são obrigatoriamente lançadas via agremiações partidárias, o segundo é a justiça eleitoral.

São os juízes eleitorais que definem se as candidaturas vão vingar. Há uma gama de possibilidades, legalmente previstas, para que a justiça eleitoral barre uma candidatura, indeferindo o pedido de registro. A mais comum é a ausência de requisito de registro, mas se destacam, também, aqueles indeferimentos fundamentados na Lei da Ficha Limpa (LC 64/90), incluídos aí os casos de abuso de poder, e na Lei das Eleições (L9504/97), geralmente por conduta vedada e gasto ilícito de recursos.

Do total 557.392 pedidos de candidatura para as eleições do próximo domingo, 19.316 foram consideradas inaptas pela Justiça Eleitoral. Isso significa que 3,47% dos candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador não puderam concorrer, por decisão judicial. Nos casos de indeferimento de registro, 75,26% dos candidatos ficaram de fora do pleito por ausência de requisito legal. O restante dos indeferimentos de candidaturas deu-se principalmente com base na lei da Ficha Limpa (12,71%), aí incluídos os casos de abuso de poder. Vale a pena registrar que a atuação da justiça eleitoral no julgamento dos registros de candidatura não é uniforme e guarda apenas relativa associação com o volume de candidaturas apresentadas em cada região do país.

A tutela e escrutínio judicial das virtudes do voto ameaça até as manifestações mais criativas de construção da representação política. Já registramos aqui a intervenção desestabilizadora da justiça eleitoral em face das candidaturas coletivas/compartilhadas, que saltaram de 13, em 2016, para 257, em 2020, segundo os dados da CEPESP/FGV.

Até que o Tribunal Superior Eleitoral se manifeste de forma definitiva sobre o tema, os eleitores seguem, às cegas, em direção às urnas no próximo domingo. Em Fortaleza, uma candidatura desse tipo está em situação precária, ao mesmo tempo que em outras cidades as candidaturas coletivas/compartilhadas não são ameaçadas.

Outro exemplo do paradoxo da justiça eleitoral, criada para gerar estabilidade, mas que, às vezes, gera o oposto, é encontrado em Porto Alegre. Na corrida à Prefeitura, José Fortunati (PDT), que vinha aparecendo bem posicionado nas pesquisas, renunciou a sua candidatura depois que seu vice foi barrado pela justiça eleitoral. O impacto sobre a corrida eleitoral de um candidato empatado em segundo lugar em uma eleição que deve ir para o segundo turno a menos de uma semana das eleições não é um elemento para a coluna de pontos positivos para nosso sistema.

No Rio de Janeiro – e desta vez vinculada à uma candidatura à vereança – outro político tradicional, Lindbergh Farias (PT), redireciona parte de seus esforços de campanha para convencer os eleitores de que seu voto não será em vão frente a incertezas geradas por uma decisão da Justiça eleitoral e pela demora das outras instâncias.

Da tutela e escrutínio das virtudes do voto, a justiça eleitoral avançou também para a da doação dos cidadãos. Uma batalha judicial foi travada em torno de uma live que Caetano Veloso anunciava como evento de arrecadação para as campanhas de Manuela D’Ávila (PCdoB) e Guilherme Boulos (Psol) às prefeituras de Porto Alegre e São Paulo, respectivamente. Neste caso, a candidatura do PCdoB mobilizou sua assessoria jurídica e conseguiu reverter a decisão da justiça eleitoral gaúcha, garantindo a realização do evento.

Teve também repercussão a proibição da divulgação de pesquisa eleitoral realizada pela Datafolha na cidade de São Paulo atendendo ao pedido do candidato apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro, Celso Russomanno (Republicanos). A batalha de liminares poderia resultar em um quadro sui generes em que o eleitor de São Paulo seria privado de avaliar as chances dos candidatos e, eventualmente, votar estrategicamente, enquanto que em tantas outras capitais e municípios os cidadãos estariam mais plenamente informados. Felizmente, a decisão foi revertida a tempo.

A agilidade na divulgação dos resultados eleitorais e a segurança das urnas e das eleições, sob responsabilidade da Justiça Eleitoral, é admirável e nos diferencia de outras experiências democráticas. Mas essas tarefas são apenas uma parte da responsabilidade de juízes e promotores eleitorais. Quando se observa o quadro todo, agravado por uma corrida eleitoral tão curta, é prudente trocar o ufanismo por cautela e espírito crítico.

Governança eleitoral: nosso sistema é melhor do que o dos EUA?

Governança eleitoral: nosso sistema é melhor do que o dos EUA?

Eleições presidenciais nos Estados Unidos: votos pelo correio, cada Estado com diferentes requisitos, múltiplas autoridades eleitorais, dúvidas em relação ao cômputo de todos os votos, apreensão em face da autoproclamada vitória do candidato à reeleição e lá vem mais um elemento da morte das democracias sendo largamente preenchido.

Em ocasiões como essa, não é raro encontrarmos manifestações celebratórias à nossa Justiça Eleitoral e sua capacidade de declarar a chapa vitoriosa na mesma noite das eleições mesmo em face de um eleitorado de quase 148 milhões de pessoas e das dimensões continentais do país.

No entanto, há mais coisas entre o céu e a terra, ou entre o sistema político estadunidense e o brasileiro, do que coloca na mesa essa categoria de discussão. As eleições parlamentares federais ocorridas na mesma data em todos os 50 Estados não trazem os mesmos problemas – trazem outro, é fato, relacionado com o desenho dos distritos.

Parece ser possível, assim, em relação à eleição presidencial, afirmar que a questão do desenho do direito fundamental ao voto (lá às vezes considerado um privilege, uma prerrogativa), as incertezas quanto ao voto pelo correio – até quando serão contados e seus critérios de validade – e o sistema de eleição majoritária e por colégio eleitoral são pontos mais relevantes, ao meu ver, para a análise do modelo estadunidense.

Nossa pretensa federação, com competências legislativas fortemente concentradas na União, com um único Código Eleitoral (aquele, elaborado no ano seguinte ao golpe civil-militar), uma Lei das Eleições para todo o país e a escolha constitucional pelo voto direto para todos os cargos eletivos que garante que todos os votos serão considerados (e não apenas aqueles que fizerem maioria em cada estado membro) evita grande parte dos problemas apresentados lá. Não impede, no entanto, que quem perca a eleição negue validade ao seu resultado, como vimos em 2014.

A autoridade eleitoral brasileira tem algumas vantagens. Sua centralização absoluta, ao arrepio do princípio federativo, assegura em boa medida que toda a cidadania brasileira tenha garantidas as múltiplas funções do direito ao sufrágio de igual maneira. É fato que vez ou outra um juiz eleitoral inventa de restringir ainda mais a propaganda eleitoral ou invalida o resultado das urnas com poucos elementos comprobatórios. Ocorre também de algum membro do ministério público eleitoral resolver ajustar condutas segundo a sua visão perfeccionista da legislação eleitoral. Mas a constitucionalização do sistema eleitoral e da determinação de quem pode votar evita a maioria dos problemas.

A existência de um corpo funcional selecionado por concurso público, com estabilidade e conhecimento técnico é, sem sombra de dúvida, seu grande trunfo e o responsável por uma administração eleitoral notavelmente competente. O alistamento eleitoral, a organização das eleições, o treinamento das autoridades de mesa, a preparação das urnas, a proclamação dos resultados são exemplos para o mundo. Os elogios, no entanto, não se estendem à atuação jurisdicional da (mesma) autoridade eleitoral. Muito menos à sua atuação normativa, que sequer tem respaldo constitucional.

A questão central, no entanto, é a concentração de funções em um mesmo órgão. A governança eleitoral é formada por três atividades – edição das regras eleitorais, administração das eleições e jurisdição eleitoral. Em um sistema democrático bem ordenado, a elaboração da legislação eleitoral ficaria reservada ao Parlamento (como determina a Constituição de 1988), com a possibilidade de controle da adequação constitucional das leis pelo Poder Judiciário. A administração das eleições seria feita por um órgão autônomo. E a jurisdição eleitoral pelo Poder Judiciário.

No Brasil, as resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) restringem direitos, criam obrigações e alteram o texto constitucional (como aconteceu com a fidelidade partidária e a perda de mandato parlamentar). O TSE determina a maneira como se darão as eleições (impondo ou suspendendo a biometria, determinando o modelo da urna eletrônica e por aí vai). E os juízos e tribunais eleitorais processam e julgam os feitos eleitorais, desde representações contra a propaganda eleitoral até crimes eleitorais, além das ações contra suas decisões administrativas.

Como se não bastasse, as decisões do TSE podem ser revistas apenas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). E três ministros do TSE são ministros do STF, o que assegura uma certa blindagem à autoridade eleitoral até mesmo no controle de constitucionalidade.

A democracia estadunidense poderia se aprimorar muito com o nosso modelo de administração eleitoral. Uma autoridade eleitoral plenipotenciária e com decisões praticamente incontrastáveis, no entanto, não passa sequer no teste menos ambicioso de democracia para exportação.

*Eneida Desiree Salgado é professora de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral na Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora líder no NINC – Núcleo de Investigações Constitucionais da UFPR.

Judicialização da competição eleitoral: a questão do dinheiro

Judicialização da competição eleitoral: a questão do dinheiro

Como a relação entre dinheiro e política chega aos tribunais no Brasil, ou seja, como a política eleitoral é judicializada? Esse é o tema aqui discutido e, para isso, analisamos alguns dados das eleições municipais de 2016, sobretudo informações disponibilizadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Antes, porém, de apresentar esses dados, é preciso entender o contexto no qual eles são produzidos.

De um lado, o Brasil é um dos poucos países em que a administração das eleições está totalmente a cargo do poder judiciário. Na maior parte do mundo, a tarefa cabe a órgãos administrativos, comumente ligados ao poder executivo de governos subnacionais, cabendo à justiça, em geral comum, somente a função jurisdicional. No caso brasileiro, as atribuições da Justiça Eleitoral vão muito além, incluindo atividades executivas e normativas.

De outro, em um cenário em que a relação ilícita entre dinheiro e política é frequente, é razoável levantar a hipótese de que se tem, no país, um forte incentivo à judicialização da política, já que ações judiciais podem ser usadas como instrumentos contra os opositores ou para questionar os resultados eleitorais, sobretudo em contextos de disputas acirradas. A comprovação definitiva desta hipótese é complexa e foge ao nosso escopo. Queremos, no entanto, oferecer alguns elementos para o debate.

Ao longo das últimas eleições nacionais, estaduais e municipais, dezenas de milhares de ações judiciais motivadas pela relação entre dinheiro e política foram ajuizadas nas diversas instâncias da Justiça Eleitoral de todo o país. Os atores que processam e/ou podem ser processados são os mais diversos: agentes políticos e servidores públicos, candidatos, coligações, partidos, doadores de campanha, entre outros. O ator que mais processa é o Ministério Público Eleitoral, órgão autorizado a atuar em todas as fases do processo eleitoral, com vistas a garantir a lisura do pleito.

Em face do limite de espaço, trazemos, para este artigo, dados relativos aos candidatos a prefeito nas eleições de 2016. Tratamos especificamente de três assuntos mais ligados à relação entre dinheiro e política: abuso de poder econômico; captação ou gasto ilícito de recursos financeiros de campanha eleitoral; e corrupção ou fraude. Além disso, dentre as numerosas classes processuais que existem, focalizamos especialmente duas: a Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) e a Representação (Rp), classes cujo prazo para interposição é próximo à realização da eleição.

Naquele ano, de todos os 16.562 candidatos a prefeito, nada menos do que 1.472 foram processados por questões ligadas à relação entre dinheiro e política (8,9% do total), ou seja, constavam da parte passiva das ações. Além disso, 324 candidatos (2,0%) iniciaram processo dessa temática contra adversários, compondo a parte ativa. Em nosso mergulho nos processos, encontramos alguns resultados interessantes:

– Candidatos à reeleição têm 83% mais chances de ser processados que os demais.

– Vencer a eleição aumenta em 85% as chances de um candidato ser processado. Em compensação, os eleitos têm apenas 14% das chances de um candidato derrotado de iniciar um processo.

– Cada ponto percentual de votação no primeiro turno aumenta, em média, em 1,4% a chance de um candidato ser processado e em 3,5% a chance média de processar um competidor.

– A cada 100 mil reais de receitas de campanha, a probabilidade de um candidato receber um processo aumenta em 5% e de iniciar um processo, em 3,2%.

– Candidatos de direita são mais processados que os de esquerda, sendo que estes, em média, têm 76% da chance daqueles de figurar no polo passivo de processos por dinheiro e política.

Nossos resultados mostram que são os candidatos mais competitivos que figuram nas ações judiciais analisadas, seja como parte ativa, seja como parte passiva. Sem desconsiderar que o uso ilegal de recursos é um problema sério no Brasil, que deve ser fiscalizado e punido, os dados indicam que a judicialização da competição eleitoral pode estar sendo usada como ferramenta estratégica dos agentes políticos, diante das oportunidades oferecidas pelas características de nossa Justiça Eleitoral, para o questionamento do resultado eleitoral.

Enfim, os dados preliminares aqui apresentados, que são parte de um projeto de pesquisa mais amplo, denominado Crime Corporativo e Corrupção Sistêmica no Brasil, financiado pela FAPESP, são apenas fragmentos das relações entre dinheiro e política em suas múltiplas facetas. A judicialização da competição eleitoral é apenas uma delas, mas seu volume e os dados aqui apresentados demonstram que se trata de questão relevante para a democracia brasileira.

* Este texto foi escrito pelos autores Rodrigo Rossi Horochovski (UFPR), Wagner Pralon Mancuso (USP), Vanessa Elias de Oliveira (UFABC) e Bruno Wilhelm Speck (USP)

Lindbergh e sua candidatura: o melhor juiz são os eleitores

Lindbergh e sua candidatura: o melhor juiz são os eleitores

Lindbergh Farias (PT) pode ser apontado como um dos favoritos para a eleição no Rio de Janeiro. Ele já esteve em cargos eletivos de maior destaque e agora concorre à Câmara dos Vereadores da capital fluminense, assim com Chico Alencar (PSOL) e César Maia (DEM). Lindbergh, ex-líder estudantil, ex-deputado, ex-prefeito e ex-senador, é uma das esperanças do partido de Lula para ter uma bancada expressiva na cidade.

Embora não existam pesquisas confiáveis para essa eleição legislativa, o ex-senador tem presença forte nas mídias sociais, além de um recall alto por sua passagem marcante no Senado e participação na eleição de 2018, em que perdeu para o filho de Bolsonaro e para Arolde de Oliveira, ambos surfistas da onda anti-política e anti-PT. Este último, aliás, faleceu recentemente em consequência da Covid, doença da qual ele desdenhava nas mídias sociais.

Mas não sabia Lindbergh que seu maior adversário não seria os seus concorrentes na disputa, mas sim uma integrante do Ministério Público Estadual e uma juíza da 23º zona eleitoral. Por uma decisão desta última, motivada por uma provocação da primeira, a candidatura de Lindbergh está cassada. A juíza, baseando-se numa condenação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 2019, a qual cabe recurso, cassou os direitos políticos do ex-senador, o que não permitiria que ele concorresse às eleições em 2020.

O imbróglio tem início em uma ação civil pública em torno de uma iniciativa de Lindbergh enquanto era prefeito de Nova Iguaçu no final de 2007. Candidato à reeleição, da qual saiu vitorioso, distribuiu caixas de leite em um programa da Prefeitura com a marca de sua administração, um sol, e escrito “Prefeito Lindbergh Farias”.

A cassação de sua candidatura, embora não envolva prisão, pune um cidadão de exercer plenamente seus direitos. Em termos políticos, uma pena capital para uma infração ainda pendente de recursos. Caso Lindbergh reverta a decisão em outras instâncias no futuro, mas seja realmente impedido de concorrer em 2020, como isso poderia ser reparado?

Cassação de Lindbergh e a instabilidade gerada pela Justiça Eleitoral

O exemplo da insegurança em relação ao futuro de Lindbergh ilustra o paradoxo da Justiça Eleitoral. Pensada como uma instituição organizada para assegurar a competitividade do processo e a observância das regras, muitas vezes funciona como um elemento de instabilidade. Não há duas eleições idênticas no país, e isso se deve por decisões do Tribunal Superior Eleitoral que criam legislação, essa é a palavra, em cada ciclo eleitoral. O que é permitido em um ano, não é em outro.

Ao assegurar autonomia e discricionariedade (o direito de escolher) para juízes e promotores, combinada com uma legislação que assegura ampla margem para interpretações, permite-se que decisões diferentes sejam tomadas por milhares de juízes e promotores responsáveis por fiscalizar o processo eleitoral em mais de cinco mil municípios. Tudo isso sem qualquer chance concreta de que, caso um dia se comprove alguma espécie de má fé dos atores judiciais, haja uma punição efetiva. E imprevisibilidade em eleições deveria ser somente dos resultados, não em relação ao processo em si.

A Justiça Eleitoral, e em especial o Ministério Público eleitoral, reproduz os problemas da Justiça comum – aliás, são os mesmos magistrados em ambas instituições. É possível que o eleitor do Rio de Janeiro seja privado de votar em um candidato, ou seu voto seja jogado no lixo em uma eventual cassação de mandato, enquanto políticos em situação análoga em outros municípios não sofram qualquer constrangimento.

Lindbergh pode recorrer ao Tribunal Regional Eleitoral. Sua defesa alega, entre outros pontos, que não houve enriquecimento ilícito e que a defesa não foi considerada em todas as suas alegações. Ele segue fazendo sua campanha. Mas, agora, não basta apresentar suas propostas para a cidade. Lindbergh precisa convencer o eleitor de que será candidato, que sempre teve uma atuação correta e que, se vencer, poderá assumir seu mandato. Todo o planejamento da campanha foi prejudicado graças à atuação de atores do Sistema de Justiça responsáveis por supostamente assegurar o equilíbrio das eleições. O julgamento que o ex-senador merece, pelo menos neste momento, é o dos eleitores cariocas.

Pra campanha ficar Odara…

Pra campanha ficar Odara…

Esta semana viralizou nas redes sociais um vídeo de Caetano Veloso, e não era com ele cantando. O compositor, falando para a câmera de Paula Lavigne, criticava decisão da Justiça Eleitoral gaúcha que proibia Manuela d’Ávila, do PCdoB de Porto Alegre, de divulgar a live que o cantor realizaria para arrecadar fundos para a campanha da candidata. A decisão gerava dúvidas se o evento poderia ou não ser realizado. Munido da legislação eleitoral, Caetano afirmava que faria o show, quase um “deixa eu cantar”.

A decisão é provisória, mas o embate não deverá ser o único desse tipo. Isso porque se tornou cada vez mais comum no Brasil a transposição para a Justiça Eleitoral das disputas entre os candidatos, em uma modalidade de judicialização das eleições que atinge as campanhas eleitorais.

As eleições tornaram-se um campo fértil para intervenção de juízes e promotores e isso se deve ao fato de que se combina, no Brasil, um quadro institucional que oferece inúmeros pontos de acesso ao Poder Judiciário. Para o caso da Justiça Eleitoral, há previsão legal de variados instrumentos jurídicos que estão à disposição dos cidadãos, mas, sobretudo, podem ser mobilizados estrategicamente pelas candidaturas. Como consequência, quase todos os aspectos do processo eleitoral podem ser questionados judicialmente.

Ainda que este modelo de governança eleitoral tenha sido pensado para garantir a legitimidade das eleições, em um ambiente de generalizada desconfiança e visão profundamente negativa da política e dos políticos, o resultado pode não ser o desejável.

Limitações dificultam a arrecadação para quem não pode doar para si mesmo

Entre as principais ferramentas de controle judicial da influência do poder econômico ou abuso de poder nas eleições, destaca-se a representação eleitoral. Esta serve para apurar e punir infrações às normas eleitorais que possam desequilibrar a disputa, incluídas aí as irregularidades referentes à propaganda eleitoral e doações e contribuições para campanhas. A discussão em torno da live de Caetano Veloso envolve, justamente, estes campos.

Equiparado a um showmício pela justiça, o que se pretendia, segundo seus organizadores, era promover um evento de arrecadação para as campanhas de Manuela e, também, de Boulos, respectivamente às prefeituras de Porto Alegre e São Paulo. A peculiaridade se restringe ao fato de que, no lugar de um teatro, a performance de Caetano aconteceria no universo virtual. A iniciativa, no entanto, tornou-se objeto de disputa, o que coloca em questão a conveniência de uma justiça que escrutina e tutela não apenas as virtudes do voto, mas também das doações dos cidadãos.

A questão se torna urgente diante de um quadro em que progressivamente se limitam as campanhas eleitorais e se alteram as regras de obtenção de recursos para que os candidatos possam divulgar suas ideias e projetos para suas cidades. Se houver limites tão rigorosos para arrecadação, quem poderá disputar eleições? Segundo matéria na imprensa, autofinanciamento já é a segunda maior fonte de recursos para os candidatos, perdendo apenas para o dinheiro vindo dos próprios partidos. Somente os ricos serão competitivos?

Profissionalização das assessorias jurídicas de campanha

Ao mesmo tempo em que avança o fenômeno da judicialização das eleições, observa-se a crescente profissionalização das assessorias jurídicas das campanhas. Bancas de advogados solapam a informalidade que marcava no passado recente a atuação errática das candidaturas perante a Justiça Eleitoral.

São expressivos os dados do TSE sobre litigância nas eleições de 2018. Embora os registros de candidaturas e as prestações de conta ainda sejam os mais contestados judicialmente, perfazendo aproximadamente 78% das ações propostas perante os TREs, as representações são a terceira classe processual mais mobilizada. E das 3.849 reclamações propostas, aproximadamente 82% questionam irregularidades em propagandas. Esse é um indicativo de quais são os principais instrumentos por meio dos quais as assessorias judicializam as campanhas, tendo por objeto preferencial justamente a propaganda eleitoral.

Nenhuma candidatura que se pretenda competitiva prescinde, atualmente, de planejamento jurídico estratégico, o que não envolve apenas aspectos defensivos. As candidaturas e campanhas dos adversários são escrutinadas em cada etapa do processo eleitoral. Não surpreende, portanto, que tenha sido um dos adversários de Manuela d’Ávila a atiçar a Justiça Eleitoral. Cada vez mais, advogadas e advogados dividem os holofotes com marqueteiros no universo das campanhas eleitorais. Diante deste quadro é que a acossada Justiça Eleitoral precisa exercer suas virtudes passivas – talvez mais do que nunca.