Esta semana viralizou nas redes sociais um vídeo de Caetano Veloso, e não era com ele cantando. O compositor, falando para a câmera de Paula Lavigne, criticava decisão da Justiça Eleitoral gaúcha que proibia Manuela d’Ávila, do PCdoB de Porto Alegre, de divulgar a live que o cantor realizaria para arrecadar fundos para a campanha da candidata. A decisão gerava dúvidas se o evento poderia ou não ser realizado. Munido da legislação eleitoral, Caetano afirmava que faria o show, quase um “deixa eu cantar”.

A decisão é provisória, mas o embate não deverá ser o único desse tipo. Isso porque se tornou cada vez mais comum no Brasil a transposição para a Justiça Eleitoral das disputas entre os candidatos, em uma modalidade de judicialização das eleições que atinge as campanhas eleitorais.

As eleições tornaram-se um campo fértil para intervenção de juízes e promotores e isso se deve ao fato de que se combina, no Brasil, um quadro institucional que oferece inúmeros pontos de acesso ao Poder Judiciário. Para o caso da Justiça Eleitoral, há previsão legal de variados instrumentos jurídicos que estão à disposição dos cidadãos, mas, sobretudo, podem ser mobilizados estrategicamente pelas candidaturas. Como consequência, quase todos os aspectos do processo eleitoral podem ser questionados judicialmente.

Ainda que este modelo de governança eleitoral tenha sido pensado para garantir a legitimidade das eleições, em um ambiente de generalizada desconfiança e visão profundamente negativa da política e dos políticos, o resultado pode não ser o desejável.

Limitações dificultam a arrecadação para quem não pode doar para si mesmo

Entre as principais ferramentas de controle judicial da influência do poder econômico ou abuso de poder nas eleições, destaca-se a representação eleitoral. Esta serve para apurar e punir infrações às normas eleitorais que possam desequilibrar a disputa, incluídas aí as irregularidades referentes à propaganda eleitoral e doações e contribuições para campanhas. A discussão em torno da live de Caetano Veloso envolve, justamente, estes campos.

Equiparado a um showmício pela justiça, o que se pretendia, segundo seus organizadores, era promover um evento de arrecadação para as campanhas de Manuela e, também, de Boulos, respectivamente às prefeituras de Porto Alegre e São Paulo. A peculiaridade se restringe ao fato de que, no lugar de um teatro, a performance de Caetano aconteceria no universo virtual. A iniciativa, no entanto, tornou-se objeto de disputa, o que coloca em questão a conveniência de uma justiça que escrutina e tutela não apenas as virtudes do voto, mas também das doações dos cidadãos.

A questão se torna urgente diante de um quadro em que progressivamente se limitam as campanhas eleitorais e se alteram as regras de obtenção de recursos para que os candidatos possam divulgar suas ideias e projetos para suas cidades. Se houver limites tão rigorosos para arrecadação, quem poderá disputar eleições? Segundo matéria na imprensa, autofinanciamento já é a segunda maior fonte de recursos para os candidatos, perdendo apenas para o dinheiro vindo dos próprios partidos. Somente os ricos serão competitivos?

Profissionalização das assessorias jurídicas de campanha

Ao mesmo tempo em que avança o fenômeno da judicialização das eleições, observa-se a crescente profissionalização das assessorias jurídicas das campanhas. Bancas de advogados solapam a informalidade que marcava no passado recente a atuação errática das candidaturas perante a Justiça Eleitoral.

São expressivos os dados do TSE sobre litigância nas eleições de 2018. Embora os registros de candidaturas e as prestações de conta ainda sejam os mais contestados judicialmente, perfazendo aproximadamente 78% das ações propostas perante os TREs, as representações são a terceira classe processual mais mobilizada. E das 3.849 reclamações propostas, aproximadamente 82% questionam irregularidades em propagandas. Esse é um indicativo de quais são os principais instrumentos por meio dos quais as assessorias judicializam as campanhas, tendo por objeto preferencial justamente a propaganda eleitoral.

Nenhuma candidatura que se pretenda competitiva prescinde, atualmente, de planejamento jurídico estratégico, o que não envolve apenas aspectos defensivos. As candidaturas e campanhas dos adversários são escrutinadas em cada etapa do processo eleitoral. Não surpreende, portanto, que tenha sido um dos adversários de Manuela d’Ávila a atiçar a Justiça Eleitoral. Cada vez mais, advogadas e advogados dividem os holofotes com marqueteiros no universo das campanhas eleitorais. Diante deste quadro é que a acossada Justiça Eleitoral precisa exercer suas virtudes passivas – talvez mais do que nunca.