Alguns dias após o encerramento do período de registro de candidaturas, o Ministério Público Eleitoral do Ceará pediu a impugnação de uma candidatura coletiva do PSOL para a Câmara Municipal de Fortaleza. Nessa modalidade, um grupo promete atuar em conjunto durante o mandato embora o registro da candidatura seja individual, como determina a Constituição. A promotora que conduz a ação argumenta que não haveria respaldo jurídico para esse modelo de candidatura e que isso poderia “induzir o eleitorado ao erro”. Argumentos, no mínimo, discutíveis.
As candidaturas coletivas e mandatos compartilhados não são novidade. Vinculados às lutas e movimentos por aprofundamento da democracia, da ampliação e pluralização da representação política e do fortalecimento dos mecanismos de accountability eleitoral, as experiências multiplicam-se. O que varia são a iniciativa, acesso, distribuição de poder, processo de tomada de decisão, partilha de custos e benefícios, mecanismos de interação, etc.
No cenário internacional, são exemplos o Demoex (Suécia, 2002-2013), o Partido Pirata (em mais de 30 países, desde 2006), o Senator Online (Austrália, 2007-2019), Movimento Cinco Estrelas (Itália, desde 2009), DemocracyOS (Argentina, desde 2012) e o Podemos (Espanha, desde 2014).
No Brasil, desde 1994 vem sendo ampliadas as experiências de candidaturas que incorporam alguma lógica coletiva/compartilhada. Foram mais de cem campanhas legislativas em todo o Brasil, em diferentes momentos, para diferentes cargos (vereador, deputado estadual, deputado federal e senador), em pelo menos cinquenta municípios, espalhados por 17 estados da federação, representando mais de vinte partidos políticos, segundo o levantamento da Raps.
Crescem as candidaturas coletivas pelo Brasil
Embora não haja previsão legal – a PEC 379/17, que visa regulamentar as candidaturas e mandatos coletivos está em tramitação – elas são uma realidade que se expandiu na eleição municipal deste ano. Apenas na capital paulista são pelo menos 34 candidaturas coletivas; no Rio de Janeiro somam-se, no mínimo mais duas. Em Porto Alegre, há notícia de pelo menos uma candidatura coletiva. Em Salvador mais uma. E em Belo Horizonte, onde já há experiência de mandato coletivo na Assembleia Legislativa, pelo menos uma dezena de candidaturas coletivas disputam vaga na Câmara de Vereadores. As chapas organizadas para disputa nesta modalidade mobilizam candidatos de partidos à esquerda e à direita do espectro político-ideológico: PSOL, PT, PC do B, mas também REDE, DEM e MDB lançam-se à experiência.
A falta de previsão legal não torna a experiência ilegal, no entanto. Isto porque o registro da candidatura é feito em nome de um candidato, que deverá atender a todos os requisitos legais e a prática do mandato coletivo não fere os ditames constitucionais, legais e regras das casas legislativas.
O que acontece é que o mandatário possui um acordo informal com o restante do grupo para que as decisões políticas, definição de projetos de leis e votação sejam tomadas em conjunto. O mandatário torna-se uma espécie de “porta-voz” do grupo que, de resto, vai participar nos bastidores, nas discussões e debates políticos.
Nos outros estados o eleitor pode escolher, mas no Ceará não?
A atuação do Ministério Público do Ceará, portanto, é no mínimo discutível, do ponto de vista do mérito. Mas o nosso ponto aqui é outro e anterior. O exemplo de Fortaleza é ilustrativo de que as instituições judiciais eleitorais, pensadas para assegurar a justiça do pleito, entendida como neutralização dos impactos de elementos não políticos no resultado, insere, ela mesma, dimensões de instabilidade. E isso ocorre justamente no momento em que a soberania popular deveria ser o principal juiz do processo – as eleições.
Particularmente, o Ministério Público Eleitoral, a exemplo da atuação dos diferentes Ministérios Públicos em questões de outra ordem (defesa de direitos difusos e coletivos e controle e combate da corrupção), arvora-se à representação do interesse público sob o pressuposto de uma discutível hipossuficiência da sociedade.
Ou seja, supõe-se que os eleitores não seriam capazes de decidir por si só se uma candidatura coletiva é melhor que a individual. Lança-se em uma disputa pela representação dos interesses da sociedade sem que se possa vislumbrar qualquer mecanismo de autorização desta mesma sociedade, tampouco de responsabilização de promotores e procuradores.
Some-se a isto o fato de que a autonomia funcional dos membros do Ministério Público – aqui incluídos os promotores eleitorais – implique em uma completa falta de previsibilidade acerca dos resultados de sua atuação, quando observados em conjunto.
Concretamente, é possível que no Ceará os eleitores não possam aderir às candidaturas coletivas, enquanto em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador e outras capitais e municípios brasileiros, experiências de mandatos coletivos sejam bem-sucedidos eleitoralmente.
Como diz o jargão, e que se aplica para este caso, muitas vezes o remédio, em altas doses, pode se transformar em veneno.