Os esforços da regulação jurídica do financiamento de partidos políticos e candidatos, considerada em muitos países uma espécie de “legislação interminável”, baseiam-se em um ímpeto moralizante da política.
Dito de outra forma, espera-se que a correta aplicação dos limites e procedimentos estabelecidos no âmbito da legislação tenham o condão de afastar o abuso do poder econômico na competição eleitoral assim como garantir, no seio da esfera pública, uma reserva de legitimidade dos partidos políticos e seus agentes por meio da transparência de seus livros contábeis.
Deve-se ressaltar que ambos os aspectos mencionados tornam-se bastante sensíveis em anos eleitorais, pois é nesse momento que as atenções do público em geral voltam-se à competição em torno dos diversos cargos políticos em disputa.
Da prestação ao julgamento de contas eleitorais
Especificamente no que tange ao julgamento de contas eleitorais de candidatos a cargos eletivos e partidos políticos, o procedimento, que é regulado tanto pela Lei nº 9.504/97 assim como por diversas resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), baseia-se nas informações prestadas virtualmente pelos candidatos por meio do Sistema de Prestação de Contas Eleitorais – SPCE. Os documentos digitalizados são, então, incluídos automaticamente no Processo Judicial Eletrônico (PJe) e os autos digitais são remetidos ao órgão responsável por realizar a análise técnico-contábil.
As informações prestadas pelos candidatos são sistematizadas e publicadas após o prazo final de apresentação das contas eleitorais, de forma que qualquer candidato, partido, coligação ou o Ministério Público podem apresentar impugnação à prestação de contas em até três dias, contados a partir da publicação do edital. Não havendo impugnação, será elaborado o chamado relatório preliminar de contas, ocasião em que o órgão técnico da Justiça Eleitoral poderá determinar diligências específicas para o saneamento de eventuais incompletudes ou inconsistências no âmbito das contas prestadas pelo candidato ou partido político.
A análise técnico-contábil termina com a elaboração do relatório conclusivo de prestação de contas, que será posteriormente enviado para o Ministério Público para a emissão de parecer no prazo de dois dias. Após o posicionamento do Ministério Público, a Justiça Eleitoral manifesta-se sobre a regularidade das contas prestadas, julgando pela aprovação, aprovação com ressalvas, desaprovação ou não prestação das contas.
Na falta de tempo hábil…
O art. 30, § 1º da Lei nº 9.504/97 estabelece que a decisão que julgar as contas dos candidatos eleitos deve ser publicada em até três dias antes da diplomação. Isso significa que, em consonância com art. 29, § 2º da referida lei, não há diplomação sem o respectivo julgamento das contas. Já as prestações de contas dos candidatos não eleitos serão apreciadas em momento posterior.
Nesse aspecto, as eleições municipais de 2020 representarão um desafio à capacidade técnica da Justiça Eleitoral. Como destacou João Andrade Neto, houve um incremento de 45 mil candidatos em relação às eleições de 2016, o que necessariamente implica em um aumento do volume de contas a serem analisadas e julgadas. Isso se somaria a todo o esforço operacional de manutenção do calendário eleitoral em meio ao caos sanitário gerado pela pandemia.
Há de se temer que, em meio ao imenso volume de trabalho e com a falta de tempo hábil, a solução intermediária expressa pela aprovação de contas com ressalvas torne-se corriqueira. Introduzida no ordenamento jurídico pela Lei nº 12.034/2009, a aprovação com ressalvas pode ocorrer mesmo com a presença de erros materiais nas contas prestadas por partidos ou candidatos.
Segundo a jurisprudência do TSE, incidem nessa hipótese pequenos valores materiais ou erros que não impedem a afirmação no sentido da lisura das contas prestadas. Até mesmo em situações envolvendo doações vedadas pela lei eleitoral, tem-se optado pela aprovação das contas com ressalvas. Valendo-se dessa cláusula polivalente – como afirmou o ministro do STF Marco Aurélio – a ausência de tempo hábil ou a insuficiência de pessoal para a análise de um grande volume de contas deixa de ser um impeditivo para o cumprimento dos prazos estabelecidos pela legislação eleitoral.
Apesar da previsão normativa e o assentamento jurisprudencial de tal prática, resta saber se o artifício criado não prejudica a finalidade que justifica a regulação jurídica do financiamento da política, qual seja, a garantia da lisura do processo eleitoral.
* Douglas Carvalho Ribeiro é doutorando em Direito na Universität Hamburg (Alemanha), membro da Albrecht Mendelssohn Bartholdy Graduate School of Law (AMBSL) e da Academia de Direito Político e Eleitoral (ABRADEP), Advogado.