Concluída a maior parte do processo eleitoral de 2020, já que ainda estão pendentes as eleições no Amapá, as análises parecem convergir em apontar uma recuperação da qualidade do debate público no Brasil, em comparação com o que foi verificado em 2018. Entretanto, em relação à desinformação, a dificuldade de obter dados no opaco e diverso ambiente das plataformas digitais impede a comparação numérica de conteúdos desinformativos nos dois pleitos. O que sabemos até aqui é que campanhas de desinformação foram menos visíveis, mas recorrentes, e tiveram maior impacto especialmente no segundo turno.
O fato de serem eleições municipais, com o debate mais próximo das ações cotidianas das prefeituras, em tempos de pandemia e menos polarizadas, especialmente no primeiro turno, pesaram nesse sentido. Além disso, a diferença entre os dois turnos da eleição pode ser considerada a partir de outros fatores.
Primeiro, a desarticulação do campo bolsonarista, o que possibilitou denúncias sobre a operação do Gabinete do Ódio no período anterior ao pleito, mas ao mesmo tempo dificultou o repasse de conhecimentos sobre a manipulação das redes. Segundo, como discutido neste Observatório a partir da análise do WhatsApp, a lógica das redes torna o potencial das campanhas de desinformação menor em contexto de fragmentação política e discursiva, pois limita a articulação de agentes que atuam em localidades e mesmo em plataformas distintas.
No segundo turno, com maior polarização entre as candidaturas, não só o debate tendeu a se tornar mais ideológico, mas também as campanhas de desinformação expressaram maior impacto e padronização de táticas e conteúdos. Panfletos apócrifos e materiais nas redes sobre ideologia de gênero, aborto e outras questões foram utilizados literalmente de Norte a Sul do país, como exemplificam Belém e Porto Alegre, numa clara tentativa de mobilização do voto conservador. Uma movimentação que contou com personagens repetidos, como o pastor Silas Malafaia, youtubers, sites que se apresentam como jornalísticos, etc. A retroalimentação de conteúdos tornou-se, portanto, mais viável naquele momento.
Um profeta com o olhar voltado para trás
Não é possível afirmar que essa mesma articulação será utilizada em 2022, afinal os atores do jogo e seus agrupamentos não estão definidos. Todavia, seria imprudente descartar essa hipótese e, com isso, reduzir o problema. Até porque se, como disse Eduardo Galeano, a história é um profeta com o olhar voltado para trás, cumpre ter em vista que elementos fundamentais para as campanhas de desinformação não foram superados. Também não parecem ter passado no teste as respostas institucionais de boa parte dos agentes públicos e privados.
A primeira questão é a da conjuntura política propriamente. Após 2018, não foram poucos os que apontaram as “fake news” como a bala de prata para a eleição de Bolsonaro. Passados dois anos do pleito, mantido um alto patamar de aprovação do presidente pela população e tendo em vista a vitória eleitoral de vários partidos de centro e direita, parece mesmo ter havido um deslocamento da média do pensamento do Brasil à direita. As operações de desinformação dialogam com isso, como comprovam o “sucesso”, em termos de viralização, daquelas que manejam temáticas conservadoras como a tal “ideologia de gênero”.
Não à toa são as mulheres as mais atacadas. O caso mais explícito é o de Manuela D’Ávila (PCdoB), que liderava as pesquisas de intenção de votos no início do pleito. Monitoramento de violência política de gênero nas redes realizado pela Revista AzMina e pelo InternetLab coletou, entre os dias 15 e 18 de novembro, 347,4 mil tuítes que citam 58 candidatas e candidatos que disputam o segundo turno em municípios de 13 estados. Do total, mais de 8 mil tinham algum termo ofensivo e 2.390 com termos ofensivos tinham uma ou mais curtidas ou retweets. Destes, 17,3% (415) eram ofensas diretas às candidatas. Manuela D’Ávila é alvo em 90% dos ataques realizados no período analisado.
Muitas das mentiras reproduzidas sobre a candidata haviam viralizado em 2018, quando foi vice na chapa com Fernando Haddad (PT) para a Presidência da República. É possível vincular essa repetição ao fato das campanhas contra ela usarem discursos machistas e misóginos amplamente aceitos na sociedade.
Ataques semelhantes foram verificados contra outras candidatas, como Marília Arraes (PT), no Recife, Benedita da Silva (PT), no Rio, e Olivia Santana (PCdoB), em Salvador. Mulheres de direita como Joice Hasselmann (PSL), em São Paulo, e Delegada Danielle (Cidadania), em Aracaju, também foram alvos de posts com viés machista, conforme levantamento da AzMina e do InternetLab. Na Bahia, apontaram, foram as mulheres negras as que mais sofreram violência online.
Reforçam a situação encontrada na Bahia os dados do Instituto Marielle Franco, que revelam que 78% das mulheres negras candidatas sofreram violência virtual. Mensagens machistas, misóginas e racistas em redes sociais, e-mail ou aplicativos de mensagens e invasão em reunião virtual são algumas das violências relatadas. Tais questões não serão modificadas facilmente, muito menos por decreto, mas o cenário suscita reflexões sobre medidas que têm sido tomadas contra a desinformação.
Os problemas que persistem
No caso da Justiça Eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) dedicou-se a enfrentar apenas as “fake news” sobre o próprio sistema eleitoral. De acordo com balanço apresentado pelo TSE, foram desmentidos 69 conteúdos sobre o tema. A maioria dos boatos identificados pela coalizão formada pelo TSE e por agências de checagem questionou a segurança das urnas eletrônicas e a fidedignidade dos resultados das eleições. Muitos deles também já eram conhecidos do público e vinham sendo desmentidos desde, pelo menos, as eleições de 2018.
O estudo “Desinformação on-line e eleições no Brasil: A circulação de links sobre desconfiança no sistema eleitoral brasileiro no Facebook e no YouTube (2014-2020)” mapeou esse tipo de conteúdo ao longo de sete anos, identificando 337.204 publicações que colocavam sob suspeição a lisura das eleições brasileiras. Muitos dos conteúdos são antigos e permanecem na rede até hoje. Os pesquisadores do DAPP-FGV concluíram que a divulgação é persistente ao longo dos anos, com picos em anos eleitorais. Na comparação entre 2018 e 2020, “como esperado, a frequência de mensagens sobre desconfiança no sistema eleitoral foi exponencialmente superior em 2018, mas 2020 já desponta como o segundo ano com mais conteúdos”.
Muitos desses posts adquiriram mais visibilidade com a divulgação a partir de pessoas e grupos que, por já possuírem projeção, amplificam a viralização, caso da família do presidente. Aliás, essa operação coordenada também foi verificada explicitamente em outros momentos das eleições deste ano, como no Recife, no Rio e em São Paulo, inclusive ainda no primeiro turno, quando mentiras foram levadas para os debates televisivos e também projetadas por meio de veículos supostamente jornalísticos nas redes.
A nítida articulação de grupos aponta a necessidade de investigar as articulações que dão suporte à produção em escala industrial da desinformação. Não tem sido esse o caminho do Brasil. A própria CPMI das Fake News não conseguiu ainda chegar a resultados conclusivos. No âmbito do Judiciário, estão pendentes de julgamento processos sobre disparo em massa na campanha de Bolsonaro em 2018, o que poderia, caso tivesse ocorrido o julgamento, ter levado à desarticulação de empresas que, como noticiou a imprensa, seguiram ofertando esse tipo de serviço. A lei que incluiu no Código Eleitoral previsão de prisão para quem espalhar fake news, aprovada em 2019, não impediu a desinformação e sequer ganhou projeção no debate público ou mesmo jurídico.
Ainda em relação ao Judiciário, merece nota a criação, pelo TSE, de canal de denúncias de disparo em massa. Em parceria com o WhatsApp, no dia 19 de outubro o TSE anunciou que mais de mil contas foram banidas. Ainda não foram divulgados dados sobre essa operação durante o segundo turno das eleições. Em relação às demais plataformas, praticamente não houve ação conjunta com o órgão, além da menção à cooperação. A definição de ações de combate ao fenômeno das fake news coube a elas, que têm apostado sobretudo na moderação de conteúdos, como apontado aqui.
O fato de conhecidas “fake news” voltarem a circular dá indícios, por sua vez, da dificuldade de alcançar e convencer os receptores. Isso acende a luz vermelha quanto à efetividade dos esforços das plataformas digitais e desse caminho, em geral. Por outro lado, merece destaque a transparência do Facebook em relação à Biblioteca de Anúncios, o que possibilitou a verificação dos conteúdos impulsionados pelas candidaturas. Com isso, também ficou claro o imenso montante de recursos – mais de R$ 100 milhões – destinados a impulsionamentos pelas campanhas, o que deve também gerar não apenas discussão, mas regulamentação, seguindo o que foi feito com a radiodifusão.
A mesma transparência, contudo, não se deu com as contas removidas, anúncios não veiculados por desinformação e afins. Plataformas como Facebook, YouTube e Twitter não apresentaram relatório das ações, o que dificulta a análise e a mensuração das fake news e das respostas das plataformas.
Em resumo, 2020 indica que as campanhas de desinformação não são operadas e, portanto, não parecem ter o mesmo impacto em campanhas pulverizadas. Ainda assim, vimos que elas não desapareceram, pelo contrário, foram instrumentalizadas para mobilizar o voto conservador e causaram estragos, seja ao longo das campanhas, especialmente das mulheres, ou mesmo nos resultados. O problema persiste e outras questões, particularmente em relação ao financiamento, aparecem como desafios, que devem estar no horizonte das instituições antes de 2022.