Uma das mais singelas definições de democracia eleitoral estabelece dois pressupostos: certeza em relação às regras e incerteza em relação aos resultados. Quem acompanha a loteria da legislação eleitoral e das decisões judiciais no Brasil já não podia ter muito apego à primeira premissa.

O campo da competição pela representação política nunca foi muito estável. É frequente e abundante a alteração das regras de uma eleição para outra: 365 modificações na legislação eleitoral entre 2012 e 2016, por exemplo. Assim como se tornou recorrente uma interpretação um tanto quanto livre e criativa das normas eleitorais na administração das eleições e na jurisdição eleitoral.

Um dos aspectos das regras, no entanto, era certo como a curvatura da Terra: o calendário eleitoral. As modalidades de propaganda mudavam, a liberdade para realizar coligações era relativizada, havia dúvidas sobre a aplicação imediata e retroativa das restrições ao direito de se apresentar como alternativa ao eleitorado. Mas a eleição tinha data certa. Até 2020.

Em face de uma pandemia e de recomendações sanitárias, uma emenda à Constituição afasta o calendário eleitoral previsto constitucional e legalmente. Altera a data das eleições em todos os 5.570 municípios do país e vai além: cria uma competência normativa para a Justiça Eleitoral que não encontra abrigo constitucional.

Para que tenha alguma utilidade prática, essa emenda afasta a incidência do princípio da anterioridade em matéria eleitoral, que impõe que a lei que altera o processo eleitoral não pode ser aplicada à eleição que ocorra a menos de um ano da mudança. Estamos falando da Emenda Constitucional (EC) 107/2020.

O adiamento das eleições é excepcional – é pandêmico

Tenho muitas dúvidas sobre a necessidade e a conveniência do adiamento da eleição em todas as cidades. Em um país deste tamanho, com realidades e medidas sanitárias tão distintas, tomar uma decisão linear pode ter impactos negativos na já abalada confiança da população na democracia e nas instituições.

Como explicar que em setembro há escolas funcionando, shoppings abertos, parques, praias e bares lotados, mas não é possível fazer a eleição em outubro? A concentração anti-federalista de poderes em uma autoridade eleitoral centralizada, no entanto, levou a essa decisão.

A EC 107 não integra o texto constitucional. É, no dizer do senador Weverton Rocha (PDT), um texto exclusivo, específico, único. Aplica-se às eleições “pandêmicas” de 2020 e só: não pode ser usado como referência, como precedente. Como um Gore vs. Bush, seus dispositivos não se aplicam a outros casos. Extinguem-se seus efeitos com o fim das eleições e da possibilidade de questionamento de seus resultados.

Esta emenda excepcional institui um calendário específico e justifica-se em circunstâncias que – ao menos em parte do território nacional – impediriam a realização das eleições em condições seguras. Traz ainda outra marca distintiva: sua construção deu-se conjuntamente pela autoridade eleitoral e pelo Poder Legislativo, com a colaboração de autoridades sanitárias. Uma decisão que foi construída coletiva e colaborativamente por distintas instituições.

Seria um sinal de novos tempos, de diálogos interinstitucionais, de uma nova leitura de separação de poderes? O Poder Judiciário, que jogou duro com o voto impresso em todas as tentativas do Congresso Nacional (com argumentos um tanto quanto forçados), que fez uma queda de braço em relação ao alcance da quitação eleitoral e que “democratiza” a discussão sobre candidaturas independentes dos partidos apesar do texto constitucional e da resposta legislativa explícita, agora vai participar de uma construção dialógica de soluções político-jurídicas.

Autoridade eleitoral tem mais poderes que outras forças

É preciso lembrar, no entanto, que diálogo e deliberação autênticos só ocorrem quando quem participa tem igual oportunidade de se fazer ouvir e está aberta a alterar sua opinião. É preciso que haja respeito entre as participantes da deliberação e que nenhuma delas possa se impor sobre as demais.

O desenho constitucional brasileiro dá superpoderes para a autoridade eleitoral e ainda dispõe que o órgão de controle de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal (STF), compartilhe integrantes com o Tribunal Superior Eleitoral. Ainda, por desenvolvimento jurisprudencial, permite-se que seis de onze integrantes invalidem uma decisão tomada por três quintos de cada casa parlamentar em duas votações. Essa decisão judicial, para ser superada, precisa do mesmo consenso parlamentar, mas pode ser afastada outra vez por seis de onze integrantes do STF.

Para haver diálogo, precisa haver modéstia institucional. Não há colaboração quando uma das partes se vê como superior às demais. Como afirma Marjorie Marona, a Emenda 107 pode ser vista como indicadora de uma disposição. Mas, digo eu, também pode ser vista como uma exceção em tempos excepcionais. Nesta luta entre a demonização da política e uma democracia mais autêntica, o futuro nos dirá se há lugar para um diálogo colaborativo entre as instituições.

Eneida Desiree Salgado é professora de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral na Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora líder no NINC – Núcleo de Investigações Constitucionais da UFPR.