Alguns indícios das eleições municipais no Brasil e das eleições presidenciais nos EUA apontam na direção de que o bolsonarismo e o trumpismo vieram para ficar, independente do resultado das eleições. Ambos os movimentos políticos podem ser entendidos como atualizações da longa história do reacionarismo-autoritário. Mas, no atual contexto, representam movimentos de dissimulação das maiorias predatórias em supostas minorias. Movimentos em detrimento de partidos. Processo mediado pela desinformação, guerras culturais e redes (pseudo)sociais.

Bolsonaro e Trump a todo o tempo fazem esse jogo de representarem uma “maioria” ameaçada e supostamente oprimida. Esse tipo de estratégia tem se mostrado eficiente e será um fenômeno duradouro. Nos termos do antropólogo indiano Arjun Appadurai, trata-se de uma angústia da incompletude que parece estar no DNA dos estados nacionais. Fato que implica na construção de identidades predatórias, isto é, identidades majoritárias que se representam como ameaçadas em suas fantasias narcísicas de viverem em uma sociedade sem diferenças, onde todos seriam o retrato delas mesmas.

Nas eleições municipais deste ano percebemos que o núcleo dos discursos da maioria dos candidatos evangélicos e militares tem como base esses códigos. Frente à ameaça de extinção e do diferente, oferece-se a representação política para garantir proteção. Os líderes políticos representam essa “maioria” ansiosa, e aqui vale lembrar que nem sempre esses grupos configuram maiorias numéricas reais, mas se apresentam enquanto tal. Maioria pode ser sinônimo daquilo tido por normal e/ou superior, e que por isso deveria ser a “alma da nação”.

No caso de nossa tradição reacionária, a “maioria” é branca (tanto quanto possível), cristã, heterossexual. Essa maioria se expressa por mitos como o da democracia racial e da cordialidade do brasileiro. Em geral, seu discurso mobiliza o medo de que possam virar minorias e que por isso a alma e o corpo da pátria-nação estaria ameaçada.

Lembremos a fala de Bolsonaro no fim do seu discurso na Assembléia Geral da ONU esse ano: “o Brasil é um país cristão e conservador e tem na família sua base”. Quem não é cristão ou conservador não pode ser brasileiro, é o inimigo interno que deve ser convertido, subjugado ou exterminado. Embora os olhos azuis de Bolsonaro não enxerguem cor, sua nação, além de cristã e conservadora, é também preferencialmente branca. Quem duvidar pode cruzar os percentuais de voto em Bolsonaro na última eleição com as categorias preto e branco.

Bolsonaro não precisa interferir diretamente nas eleições, pois a agenda, a linguagem e a energia de seu movimento já estão colocados nos pleitos municipais, atravessando um amplo espectro partidário. No que se refere aos chamados evangélicos, é preciso destacar que um em cada três brasileiros é evangélico. Não se trata, portanto, de uma frágil minoria. Em se tratando de representação política é certamente o segmento religioso com maior representação.

A Frente Parlamentar Evangélica, por exemplo, é composta por mais de 200 parlamentares, isto é, mais de 30% do total de parlamentares. No ano passado, essa frente foi considerada pelo “Estadão” a bancada mais governista dos últimos cinco mandatos presidenciais, já que 90% dos seus votos foram a favor do governo Bolsonaro. É no interior desse contexto que devemos entender o aumento, na eleição deste ano, de 10% dos candidatos a prefeitos e mais de 40% dos candidatos a vereador com títulos religiosos.

Bolsonaro soube, como ninguém, capturar a maior parte das lideranças e bases desse segmento. A disputa política no Brasil cada vez mais passará por algum tipo de negociação e articulação com o movimento/segmento evangélico. Ignorá-los e/ou apenas rotulá-los é certamente um erro. E os estudos atuais mostram que caso os evangélicos continuem a crescer no mesmo ritmo, eles serão a maioria da população brasileira na próxima década. O grande problema é que cada vez mais o “campo evangélico” vem sendo hegemonizado por lideranças conservadoras e/ou reacionárias.

Nessa direção, para esse segmento da população torna-se estratégico a aliança com líderes políticos que atualizam a tradição conservadora e realizam a guerra cultural por meio da construção de identidades predatórias. Assim, nossa aposta é que nas eleições deste ano a representação evangélica conservadora será a que mais crescerá. E continuará dessa forma até que o campo progressista desenvolva uma estratégia inteligente de diálogo.

As esquerdas não devem ser vistas como uma ameaça existencial que alimente as ansiedades dessa maioria em ascensão. Pautas como a descriminalização do aborto e o casamento homoafetivo são exemplos de como essa maioria anseia por formas totais de controle. Haveria um medo profundo de que com o aborto discriminalizado os próprios cristãos-evangélicos adotariam a prática? Da mesma forma, no discurso conservador há um medo de que a visibilidade LGBT gere algum tipo de contaminação e epidemia. No fundo, há o medo de que em um novo normal uma nova maioria reproduza os comportamento intolerantes das maiorias predatórias.

Ao tirar do armário pautas tabus como o direito ao aborto e o respeito às diferenças, mesmo que involuntariamente, a onda conservadora pode ter aberto finalmente a oportunidade para um debate mais profundo sobre esses temas na sociedade brasileira. Quem sabe possamos encontrar modos em que as maiorias possam ser menos predatórias e mais solidárias.

A nova estratégia do campo progressista precisa ser pensada para além do capitalismo neoliberal e suas metamorfoses, já que a destruição causada por este modelo hegemônico tem minado as possibilidades emancipatórias e transformadoras que existiam, mesmo que de forma latente, nas sociedades liberais. A direita tem sido mais sagaz em atualizar seu discurso. Um exemplo disso, nessa eleição, foi a frase da candidata a prefeitura de São Paulo, Joice Hasselmann, que afirmou que quase do dia para noite pode-se transformar um desempregado em um empreendedor.

Enquanto o campo progressista não for capaz de entender as mudanças em curso, por exemplo, nos mundos da religião e do trabalho, o Bolsonarismo, entendido como uma atualização local, circunstancial e singular da tradição conservadora/reacionária-autoritária, continuará a construir uma forte base social e não apenas nas periferias das grandes cidades. É o que parte dos dados disponíveis das pesquisas realizadas até o momento estão indicando.

Assim, sem abandonar suas especificidades e pautas, um dos desafios do campo progressista é construir discursos e políticas públicas concretas também para as “maiorias ansiosas” que podem se tornar, como dissemos, predatórias, mas que também podem assumir formas solidárias. Do contrário, o medo continuará a ser o afeto dominante em nossa vida política e social. O bolsonarismo sempre esteve entre nós e continuará presente por muito tempo, o que podemos fazer é trabalhar para desativá-lo atualizando outras histórias.

* Mateus Pereira é Professor Associado da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), onde leciona, na graduação, disciplinas sobre História do Brasil República. É membro do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM). Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (2006), onde também se graduou em História (1999).
Valdei Araújo é Professor Adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Possui graduação(1995) e mestrado(1998) em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, doutorado em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2003), com estágio PDEE na Universidade de Stanford.