por Helena Martins | dez 5, 2020 | Destaque 1, Fake News
Concluída a maior parte do processo eleitoral de 2020, já que ainda estão pendentes as eleições no Amapá, as análises parecem convergir em apontar uma recuperação da qualidade do debate público no Brasil, em comparação com o que foi verificado em 2018. Entretanto, em relação à desinformação, a dificuldade de obter dados no opaco e diverso ambiente das plataformas digitais impede a comparação numérica de conteúdos desinformativos nos dois pleitos. O que sabemos até aqui é que campanhas de desinformação foram menos visíveis, mas recorrentes, e tiveram maior impacto especialmente no segundo turno.
O fato de serem eleições municipais, com o debate mais próximo das ações cotidianas das prefeituras, em tempos de pandemia e menos polarizadas, especialmente no primeiro turno, pesaram nesse sentido. Além disso, a diferença entre os dois turnos da eleição pode ser considerada a partir de outros fatores.
Primeiro, a desarticulação do campo bolsonarista, o que possibilitou denúncias sobre a operação do Gabinete do Ódio no período anterior ao pleito, mas ao mesmo tempo dificultou o repasse de conhecimentos sobre a manipulação das redes. Segundo, como discutido neste Observatório a partir da análise do WhatsApp, a lógica das redes torna o potencial das campanhas de desinformação menor em contexto de fragmentação política e discursiva, pois limita a articulação de agentes que atuam em localidades e mesmo em plataformas distintas.
No segundo turno, com maior polarização entre as candidaturas, não só o debate tendeu a se tornar mais ideológico, mas também as campanhas de desinformação expressaram maior impacto e padronização de táticas e conteúdos. Panfletos apócrifos e materiais nas redes sobre ideologia de gênero, aborto e outras questões foram utilizados literalmente de Norte a Sul do país, como exemplificam Belém e Porto Alegre, numa clara tentativa de mobilização do voto conservador. Uma movimentação que contou com personagens repetidos, como o pastor Silas Malafaia, youtubers, sites que se apresentam como jornalísticos, etc. A retroalimentação de conteúdos tornou-se, portanto, mais viável naquele momento.
Um profeta com o olhar voltado para trás
Não é possível afirmar que essa mesma articulação será utilizada em 2022, afinal os atores do jogo e seus agrupamentos não estão definidos. Todavia, seria imprudente descartar essa hipótese e, com isso, reduzir o problema. Até porque se, como disse Eduardo Galeano, a história é um profeta com o olhar voltado para trás, cumpre ter em vista que elementos fundamentais para as campanhas de desinformação não foram superados. Também não parecem ter passado no teste as respostas institucionais de boa parte dos agentes públicos e privados.
A primeira questão é a da conjuntura política propriamente. Após 2018, não foram poucos os que apontaram as “fake news” como a bala de prata para a eleição de Bolsonaro. Passados dois anos do pleito, mantido um alto patamar de aprovação do presidente pela população e tendo em vista a vitória eleitoral de vários partidos de centro e direita, parece mesmo ter havido um deslocamento da média do pensamento do Brasil à direita. As operações de desinformação dialogam com isso, como comprovam o “sucesso”, em termos de viralização, daquelas que manejam temáticas conservadoras como a tal “ideologia de gênero”.
Não à toa são as mulheres as mais atacadas. O caso mais explícito é o de Manuela D’Ávila (PCdoB), que liderava as pesquisas de intenção de votos no início do pleito. Monitoramento de violência política de gênero nas redes realizado pela Revista AzMina e pelo InternetLab coletou, entre os dias 15 e 18 de novembro, 347,4 mil tuítes que citam 58 candidatas e candidatos que disputam o segundo turno em municípios de 13 estados. Do total, mais de 8 mil tinham algum termo ofensivo e 2.390 com termos ofensivos tinham uma ou mais curtidas ou retweets. Destes, 17,3% (415) eram ofensas diretas às candidatas. Manuela D’Ávila é alvo em 90% dos ataques realizados no período analisado.
Muitas das mentiras reproduzidas sobre a candidata haviam viralizado em 2018, quando foi vice na chapa com Fernando Haddad (PT) para a Presidência da República. É possível vincular essa repetição ao fato das campanhas contra ela usarem discursos machistas e misóginos amplamente aceitos na sociedade.
Ataques semelhantes foram verificados contra outras candidatas, como Marília Arraes (PT), no Recife, Benedita da Silva (PT), no Rio, e Olivia Santana (PCdoB), em Salvador. Mulheres de direita como Joice Hasselmann (PSL), em São Paulo, e Delegada Danielle (Cidadania), em Aracaju, também foram alvos de posts com viés machista, conforme levantamento da AzMina e do InternetLab. Na Bahia, apontaram, foram as mulheres negras as que mais sofreram violência online.
Reforçam a situação encontrada na Bahia os dados do Instituto Marielle Franco, que revelam que 78% das mulheres negras candidatas sofreram violência virtual. Mensagens machistas, misóginas e racistas em redes sociais, e-mail ou aplicativos de mensagens e invasão em reunião virtual são algumas das violências relatadas. Tais questões não serão modificadas facilmente, muito menos por decreto, mas o cenário suscita reflexões sobre medidas que têm sido tomadas contra a desinformação.
Os problemas que persistem
No caso da Justiça Eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) dedicou-se a enfrentar apenas as “fake news” sobre o próprio sistema eleitoral. De acordo com balanço apresentado pelo TSE, foram desmentidos 69 conteúdos sobre o tema. A maioria dos boatos identificados pela coalizão formada pelo TSE e por agências de checagem questionou a segurança das urnas eletrônicas e a fidedignidade dos resultados das eleições. Muitos deles também já eram conhecidos do público e vinham sendo desmentidos desde, pelo menos, as eleições de 2018.
O estudo “Desinformação on-line e eleições no Brasil: A circulação de links sobre desconfiança no sistema eleitoral brasileiro no Facebook e no YouTube (2014-2020)” mapeou esse tipo de conteúdo ao longo de sete anos, identificando 337.204 publicações que colocavam sob suspeição a lisura das eleições brasileiras. Muitos dos conteúdos são antigos e permanecem na rede até hoje. Os pesquisadores do DAPP-FGV concluíram que a divulgação é persistente ao longo dos anos, com picos em anos eleitorais. Na comparação entre 2018 e 2020, “como esperado, a frequência de mensagens sobre desconfiança no sistema eleitoral foi exponencialmente superior em 2018, mas 2020 já desponta como o segundo ano com mais conteúdos”.
Muitos desses posts adquiriram mais visibilidade com a divulgação a partir de pessoas e grupos que, por já possuírem projeção, amplificam a viralização, caso da família do presidente. Aliás, essa operação coordenada também foi verificada explicitamente em outros momentos das eleições deste ano, como no Recife, no Rio e em São Paulo, inclusive ainda no primeiro turno, quando mentiras foram levadas para os debates televisivos e também projetadas por meio de veículos supostamente jornalísticos nas redes.
A nítida articulação de grupos aponta a necessidade de investigar as articulações que dão suporte à produção em escala industrial da desinformação. Não tem sido esse o caminho do Brasil. A própria CPMI das Fake News não conseguiu ainda chegar a resultados conclusivos. No âmbito do Judiciário, estão pendentes de julgamento processos sobre disparo em massa na campanha de Bolsonaro em 2018, o que poderia, caso tivesse ocorrido o julgamento, ter levado à desarticulação de empresas que, como noticiou a imprensa, seguiram ofertando esse tipo de serviço. A lei que incluiu no Código Eleitoral previsão de prisão para quem espalhar fake news, aprovada em 2019, não impediu a desinformação e sequer ganhou projeção no debate público ou mesmo jurídico.
Ainda em relação ao Judiciário, merece nota a criação, pelo TSE, de canal de denúncias de disparo em massa. Em parceria com o WhatsApp, no dia 19 de outubro o TSE anunciou que mais de mil contas foram banidas. Ainda não foram divulgados dados sobre essa operação durante o segundo turno das eleições. Em relação às demais plataformas, praticamente não houve ação conjunta com o órgão, além da menção à cooperação. A definição de ações de combate ao fenômeno das fake news coube a elas, que têm apostado sobretudo na moderação de conteúdos, como apontado aqui.
O fato de conhecidas “fake news” voltarem a circular dá indícios, por sua vez, da dificuldade de alcançar e convencer os receptores. Isso acende a luz vermelha quanto à efetividade dos esforços das plataformas digitais e desse caminho, em geral. Por outro lado, merece destaque a transparência do Facebook em relação à Biblioteca de Anúncios, o que possibilitou a verificação dos conteúdos impulsionados pelas candidaturas. Com isso, também ficou claro o imenso montante de recursos – mais de R$ 100 milhões – destinados a impulsionamentos pelas campanhas, o que deve também gerar não apenas discussão, mas regulamentação, seguindo o que foi feito com a radiodifusão.
A mesma transparência, contudo, não se deu com as contas removidas, anúncios não veiculados por desinformação e afins. Plataformas como Facebook, YouTube e Twitter não apresentaram relatório das ações, o que dificulta a análise e a mensuração das fake news e das respostas das plataformas.
Em resumo, 2020 indica que as campanhas de desinformação não são operadas e, portanto, não parecem ter o mesmo impacto em campanhas pulverizadas. Ainda assim, vimos que elas não desapareceram, pelo contrário, foram instrumentalizadas para mobilizar o voto conservador e causaram estragos, seja ao longo das campanhas, especialmente das mulheres, ou mesmo nos resultados. O problema persiste e outras questões, particularmente em relação ao financiamento, aparecem como desafios, que devem estar no horizonte das instituições antes de 2022.
por Helena Martins e Luciana Santana | nov 26, 2020 | Cidades, Destaque 3, Fake News
A poucos dias do segundo turno das eleições, o pleito parece ser atravessado por estratégias danosas ao debate democrático, com grupos valendo-se de disseminação de desinformação contra candidaturas que lideram pesquisas, como está claro nos casos de Recife, Belém, Fortaleza e Rio de Janeiro.
No Recife, pesquisa Ibope divulgada nesta quarta-feira (25) apontou liderança de João Campos (PSB), com 43%, ao passo que Marília Arraes (PT) soma 41%. A mudança no posicionamento dos candidatos pode ter como um dos motivos a campanha de desinformação em curso contra Marília, que se dá de forma explícita e implícita. Circula no Recife panfleto apócrifo com o título “Cristão de verdade não vota em Marília Arraes”. Nele, uma foto da candidata e, ao redor dela, balões com aquilo que a autoria não identificada quer relacionar com ela: defesa do aborto, legalização das drogas, ideologia de gênero. Há uma citação atribuída a ela na qual se posicionaria contra o costume de ler a Bíblia e falar em nome de Deus, cujo contexto não é explicitado. A questão foi parar no programa eleitoral de João Campos na TV, que também usou o argumento de que a petista era contra a Bíblia.
A defesa de Marília argumentou que a frase foi proferida durante discurso na Câmara Municipal, em que defendia a laicidade do Estado no âmbito das instituições públicas. A Justiça Eleitoral determinou a retirada do ar da propaganda, pois avaliou que falas foram tiradas de contexto e que tentam “confundir o eleitorado”. Além da referência à Bíblia, Campos dizia em sua propaganda que “a candidata Marília assinou documento para acabar com o Prouni Recife”, posicionamento que também foi retirado de contexto, de acordo com a decisão judicial.
Ainda que não seja possível comparar pesquisas de intenções de votos entre diferentes institutos, pois cada um segue metodologia própria, é útil ter em vista que, na última pesquisa Datafolha, realizada nos dias 18 e 19, Marília aparecia com 41% e João com 34%. 21% dos entrevistados mencionaram que votarão nulo ou branco e apenas 3% disseram-se indecisos. Ao serem questionados se a intenção de voto mencionada ainda pode mudar, 12% afirmaram que sim. Ou seja, embora a pesquisa tenha apontado vantagem da petista, muitos votos não estão consolidados. A forma como o eleitor recebe a “informação” nos panfletos pode comprometer a credibilidade dos candidatos – e provavelmente este efeito já está acontecendo, dado o resultado do Ibope do dia 25, em que João ultrapassou Marília.
Ainda naquela pesquisa Datafolha, dentre os entrevistados que se declararam evangélicos, 33% mencionaram ter preferência por Marília e 38% por João Campos. Entre os católicos, 44% preferiam Marília e 35% por Campos. Aqui já era possível verificar uma margem considerável de diferença que deve ter sido visualizada como espaço para crescimento para o candidato do PSB, que passou a buscar dar destaque a temas que mobilizam eleitores evangélicos. Demonstrando preocupação com o impacto da questão junto a este público, Marília, além de utilizar suas redes sociais, participou de um encontro com lideranças religiosas no domingo.
Outro tema que mobiliza bastante o eleitorado também tem sido levantado contra Marília: a corrupção. Reportagem da revista Veja destacou gravação de Túlio Gadelha (PDT-PE) que reforçaria suspeita de cobrança de ‘rachadinha’ pela candidata. O deputado divulgou nota rotulando a questão como “fake news” e detalhando que Marília já foi absolvida de acusações do tipo e que ação contra ela sobre possível ‘rachadinha’ está arquivado desde 2019. Mencionou ainda que o áudio está descontextualizado e que solicitou perícia para comprovar manipulação. O estrago, contudo, já está feito, como comprova a circulação, por meio do WhatsApp, de uma música irônica sobre a questão que trata a candidata como “Marília rachadinha”, adjetivo que também tem conotação sexual.
Em disputa acirrada, apologia conservadora à família é arma em Belém
Em Belém, a situação também é delicada. O candidato Edmilson (PSOL), que já foi prefeito por duas vezes, lidera as pesquisas de intenção de voto desde o primeiro turno, e chegou ao segundo turno com 34,2% dos votos válidos. Seu adversário é o Delegado Eguchi (Patriota), que obteve 23,06% dos votos e ultrapassou candidatos tradicionais na capital.
A pesquisa Ibope divulgada no último dia 20 apresenta empate técnico entre eles. Edmilson tem 45% e Eguchi 43%. Diante de um cenário indefinido e muito acirrado, campanhas de desinformação têm dominado o cenário.
Como verificado em Recife, São Paulo ou em outras capitais com candidaturas mais à esquerda, Edmilson tem sido alvo de ataques pelas redes sociais. Uma das notícias falsas que circula diz que ele irá construir banheiros de uso comum (unissex) e tornará a ideologia de gênero obrigatória nas escolas públicas e privadas, de forma que “as crianças escolherão se querem ser meninos ou meninas”. As notícias parecem ser requentadas em outros municípios – em Porto Alegre, Manuela D’Ávila fez uma publicação nessa semana dizendo que não irá tornar todos os banheiros unissex e declarando que essa era mais uma desinformação circulando.
No Instagram, também é possível encontrar postagens que ligam o candidato à pedofilia, zoofilia, aborto e outros temas que variam do polêmico ao absurdo. Apesar do candidato ser um defensor da diversidade, tais postagens não são verdadeiras. Por outro lado, o lema da campanha de seu adversário é “Deus, Pátria e Família”. Todo esse cenário tem esquentado nas campanhas, inclusive o debate da RBA (grupo Bandeirantes) foi marcado por acusações entre os prefeituráveis.
Evangélicos: último reduto para Wagner em Fortaleza
A desinformação pode pesar bastante em situações de disputa acirrada, como vimos nos casos já mencionados e no de Manuela D’Ávila. Mas também parece haver apelo a esse tipo de ataque diante da derrota iminente, ainda que seus resultados dificilmente levem a uma alteração significativa do quadro eleitoral.
É o caso da capital cearense, onde a última pesquisa Ibope, divulgada na segunda-feira (23), registra que José Sarto (PDT) lidera com 53% e Capitão Wagner (PROS) tem 35%. Panfletos apócrifos têm sido distribuídos em templos religiosos. Um deles traz as seguintes frases em destaque: “Por que meu pastor não vota no Sarto?”, “Sou evangélico(a), por que não devo votar no Sarto?” e “Portanto, no próximo domingo não se omita, vote em defesa da família e da sua fé”.
Além de fazer referências a supostos posicionamentos de Ciro Gomes, apoiador de Sarto, sobre fechamento de templos e “fim da moral cristã”, diz que o grupo do candidato é “totalmente comprometido com a política gay para as crianças” e teria implementado, na cidade de Sobral, o “ensino da ideologia de gênero, que visa erotizar nossos filhos”. Afirma ainda que o grupo é favorável ao aborto. Recortes de manchetes de jornais são utilizados para “confirmar” todo o exposto, sem vinculação a cada denúncia e desprovidos de contexto. Ocorre que Sarto está longe de ser um candidato radical, sendo melhor classificado como um político tradicional, sem participação em debates mais polarizados pelos diferentes espectros políticos.
O panfleto, embora não seja assinado, repete argumentos que têm sido espalhados também por meio de vídeos nas redes sociais. Em um deles, o pastor Silas Malafaia cita que os partidos de esquerda foram a favor da “ideologia de gênero”, que seria um “lixo moral”. Menciona ainda que os partidos teriam entrado no Supremo Tribunal Federal para impedir que mulheres denunciassem estupradores. Na verdade, a ação movida pelo PT, PCdoB, PSB, PSOL e PDT contesta portaria do Ministério da Saúde que estabelece uma série de diretrizes sobre o aborto em caso de estupro, que é permitido por lei.
A estratégia volta-se ao único setor em que Wagner lidera as intenções de voto. De acordo com pesquisa Datafolha divulgada em 20 de novembro, entre eleitores que se declararam evangélicos, o candidato do PROS concentra 53%, contra 35% de Sarto. Sarto aparecia com 59% e Wagner, com 41%. A necessidade de apelar para a mobilização do voto evangélico deve ter ficado clara para a equipe do candidato. Considerando as demais variáveis, Sarto lidera ou, no máximo, empata. Interessante perceber que, nesta pesquisa, a diferença era menor que a visualizada pelo Ibope. Mesmo entre católicos, Sarto contava com 60% das intenções. O adversário, com 35%.
A mobilização de conteúdos de cunho religioso não tem sido a única estratégia contra Sarto. No sábado (21), a Justiça concedeu direito de resposta após Capitão Wagner disseminar conteúdo ligando o pedetista a facções criminosas, afirmando que estas permitiriam a campanha dele, o que seria indício de proximidade.
Por outro lado, assim como desde o início da campanha, os ataques contra Wagner centram-se na participação na greve da Polícia Militar em fevereiro deste ano, apontadas como motim em comunicações de candidatos e políticos, como já mostramos neste Observatório, e em imagens que povoam grupos de WhatsApp e redes sociais em geral. É difícil não associar o limite de crescimento de Wagner exatamente à vinculação com a pauta e grupos que o alçaram à política institucional. Com dificuldades de tornar o teto mais distante, seus apoiadores buscam aproximá-lo do setor mais conservador, com o qual ele buscou evitar ser rotulado no primeiro turno, o que, inclusive, o fez evitar a presença explícita de Jair Bolsonaro na campanha.
O “kit gay” volta às eleições no Rio de Janeiro
A mobilização do sentimento religioso conservador tem ocorrido com força também no Rio de Janeiro. O bispo e atual prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) aparece bastante distante do primeiro lugar na última pesquisa Datafolha, Eduardo Paes (54%), registrando apenas 21% das intenções de voto. O levantamento foi divulgado no dia 19. De lá para cá, como noticiou o UOL, moradores receberam panfleto apócrifo que dizia, sem provas, que Paes (DEM) é a favor da legalização do aborto, da liberação das drogas e do “kit gay” nas escolas municipais. No folheto, assinado pela própria campanha de Crivella, Paes aparece ao lado de Marcelo Freixo (PSOL), apresentado como “amigo” do candidato.
Não parou por aí. Em vídeo divulgado nas redes, Crivella disse que o PSOL tentaria implementar “pedofilia nas escolas”, em um eventual governo de Eduardo Paes (DEM). A mentira acabou gerando muita reação negativa. Levantamento feito a pedido de O Globo no Twitter mostrou que 95% das mensagens foram de crítica à declaração de Crivella. O principal influenciador do debate foi o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL). Não é possível mensurar, contudo, o alcance desse tipo de conteúdo em grupos menos abertos ao contraditório, como grupos religiosos no WhatsApp. De todo modo, o exemplo do Twitter e os resultados das pesquisas no Rio são úteis para notarmos que não basta produzir um conteúdo apelativo para crescer.
Complexidade no processo de comunicação e decisão do voto
O processo de comunicação e a própria decisão pelo voto são muito complexos. Na reta final da corrida eleitoral, como em 2018, fica nítida a tentativa de mobilização do eleitorado conservador por meio do destaque a temas relacionados a gênero e religião, com o objetivo de influenciar especialmente o voto de evangélicos conservadores. Se, no primeiro turno, as campanhas estavam pulverizadas entre diversas candidaturas e optaram por um discurso mais ameno, de apresentação dos prefeituráveis e de suas propostas, agora a polarização parece voltar à tona. Superar esse tipo de instrumentalização com amplo debate na sociedade é necessário para frear ou, ao menos, reduzir o impacto das campanhas de desinformação.
por Helena Martins | nov 25, 2020 | Cidades, Destaque 2, Fake News, Gênero e raça
Manuela D’Ávila (PCdoB), que despontou nestas eleições como favorita na disputa pela prefeitura de Porto Alegre, enfrenta mais um momento desafiante em sua trajetória política. De acordo com pesquisa Ibope divulgada nesta terça-feira, 24, Sebastião Melo (MDB) tem 49% e Manuela, 42%. Quando considerados os votos válidos, são 54% e 46%, respectivamente. A margem de erro, os sempre imponderáveis últimos dias de campanha e o resultado concreto das urnas podem levar a mudanças, claro. Mas contra Manuela, que terminou o primeiro turno apenas 2% atrás do adversário, pesam as campanhas de desinformação com teor explicitamente misógino.
Nas redes, crescem ataques pessoais combinados a conteúdos que buscam gerar medo na sociedade, a partir da mobilização de temas como o comunismo. O machismo fica nítido ao se observar o que circula em plataformas como o WhatsApp contra Manuela, imagens que opto por não expor aqui para reduzir a circulação da desinformação, ainda que sejam facilmente encontradas na internet. Muitas expõem e manipulam fotos da candidata, com ênfase em seu corpo e rosto. A aparência é o foco dos ataques. Tenta-se imputar a ideia de irresponsável. Em uma montagem são acrescidas tatuagens com rostos de líderes como Che Guevara e Lênin e uma frase que questiona o que seria a prefeitura liderada por ela. É feito também contraponto com o que seria a mulher ideal. Manuela tem tido sua imagem frequentemente comparada à de Michele Bolsonaro. Esta, sim, é apresentada como “recatada e do lar”.
Uma postagem afirma que Manuela trocou ‘o crucifixo no ânus por um escapulário católico’ e agora, apenas por ser campanha eleitoral, vale-se de ‘roupas recatadas’. Há ainda uso de uma fotografia de Manuela aos 15 anos, acompanhada do seu pai, insinuando que se tratava de seu namorado. Em outra, aparece a adolescente sozinha. A exposição vem acompanhada de uma legenda dizendo que Manuela odeia a foto, e convidando os outros a divulgá-la com o intuito de atacar a sua aparência “Só de marra vamos compartilhá-los ao máximo”, diz o texto.
No Twitter, circula áudio atribuído à coordenação da campanha de Sebastião Melo (MDB), que lidera as pesquisas de intenção de voto no segundo turno da disputa à prefeitura de Porto Alegre, em que Manuela é chamada de “vadia”. Divulgado pelo ativista Luiz Muller e por veículos como a Fórum e a Agência Pública, no áudio diz-se que: “Se entrar essa vadia ai vai ser um problema muito sério para a cidade”. A autoria não foi confirmada.
Ataques envolvendo corrupção, suposta ditadura venezuelana e atrocidades atribuídas a regimes comunistas são lançados contra a candidata. Exemplo disso, circula boato de que ela teria sido presa por conta da delação da Odebrecht, processo já arquivado pelo Ministério Público. Com mais de 130 mil visualizações em apenas sete horas de disponibilização na segunda, 23, vídeo do canal Giro de Notícias intitulado “A PRISÃO DE MANUELA D’AVILA, O MAIOR ATAQUE DA MÍDIA NO BRASIL, POLÍCIA FAZ LIMPEZA”. O conteúdo também está sendo compartilhado no WhastApp, de acordo com o Radar da agência de verificação Aos Fatos.
Uma hashtag #ManuzuelaNão sintetiza essa vertente de ataques. Após o assassinato de José Alberto Freitas, morto por asfixia por seguranças do Carrefour, e os protestos em repúdio à execução na última sexta-feira, 20, Manuela também passou a ser responsabilizada. É o caso do conteúdo apresentado como notícia no portal Terra Brasil Notícias, que tem como lema “Deus acima de tudo e de todos”. Link que destaca o título “Irresponsável: Comunista Manuela D’Ávila usou redes sociais para convocar protestos que terminaram em violência” tem sido compartilhado, assim como post adulterado de Manuela sobre o caso, no qual ela convocaria os protestos.
Merece destaque o uso de adjetivo não só pejorativo, como contrário ao que o patriarcalismo diz ser esperado de uma mulher (responsabilidade, cuidado). Não é o mesmo tipo de ataque que vemos, por exemplo, no caso de Guilherme Boulos (PSOL), na disputa para a prefeitura de São Paulo.
A violência de gênero é explícita – ataques a candidatos homens são diferentes
O mesmo site Terra Brasil Notícias publicou: “Boulos vira motivo de piadas nas redes após dizer que problema da previdência é número baixo de funcionários públicos”. No Twitter, ganhou repercussão tweet em que Boulos teria escrito defender abrigar moradores de rua na casa de quem tem quartos vagos, o qual foi postado por uma conta falsa. Ainda no primeiro turno, como abordado aqui, acusação falsa de que teria contratado empresas fantasmas ganhou lastro. São, pois, temas relacionados ao conteúdo político, não aos atributos pessoais, muito menos ao corpo do candidato.
Embora se tratem ambos de políticos que abraçam visões de mundo de esquerda, há uma abordagem diferente, que leva a crítica para a dimensão pessoal no caso das campanhas arquitetadas contra Manuela. É o que vemos no texto também identificado pela Aos Fatos em grupos do WhatsApp: “A comunista patricinha, no primeiro turno vinha ‘pagar de boa moça’, acusava os adversários de fazer campanha suja contra ela, a mesma inclusive em seus lixos de propagandas na teve, disse que ela era contra isso, pois tinha projeto. Como todo mundo sabe, ELA TRAÍ, e agora ELA vem fazer no horário eleitoral a mesma coisa que ela julgava errado antes. Assim é o PT, PSOL, PCdoB e PDT, usam mulheres, usam vidas negras, usam todo mundo para chegar no poder. E você vai cai nisso, ou vai dar um “tapa de luva” nestes lixos e votando 15 em Melo”.
O compartilhamento do link e a referência à “traição” mostram ainda a retroalimentação que se dá entre as mídias e também expressa como as violências contra as mulheres na política são recorrentes e perpetuadas, inclusive pela ausência de responsabilização. Como costuma ocorrer nas campanhas de desinformação, as agressões na rede são alimentadas por amplificadores, como o candidato Rodrigo Maroni (Pros), que no último debate do primeiro turno disse que Manuela “mentia e dissimulava”. “Tu é patricinha mimada, poderia estar comprando bolsa no shopping. Se eu fosse abrir a boca, eu não acabaria com a carreira, mas com tua vida, Manuela”, afirmou. No primeiro debate entre candidatos, Maroni, ex-noivo da pcdobista, também havia desferido ataques machistas contra ela, acusando-a de traição, o que foi amplamente repercutido na mídia.
O impacto eleitoral das campanhas de desinformação
Dadas a opacidade das plataformas digitais e a diversidade de canais de comunicação, é difícil precisar o volume dos ataques e seus impactos. Entretanto, a resposta judicial, sempre menor do que o que realmente ocorre, pois as investigações dependem dos conteúdos serem encontrados e denunciados, permite-nos traçar contornos do quadro. Ainda no primeiro turno, quando Manuela aparecia na liderança das pesquisas de intenção de votos, a Justiça Eleitoral determinou que Facebook, Instagram, Twitter e YouTube retirassem do ar meio milhão de compartilhamentos de conteúdo falso contra ela. O somatório refere-se a apenas dez postagens denunciadas. Não é inexpressivo.
Some-se a isso ainda o fato de campanhas de desinformação contra Manuela serem antigas e permanentes. Após dividir chapa com Fernando Haddad (PT) à presidência da República nas eleições de 2018, marcadas pelo fenômeno da desinformação e intolerância nas redes sociais, Manuela chegou a criar o instituto E Se Fosse Você?, uma organização não-governamental, e lançou o livro “E Se Fosse Você? Sobrevivendo às redes de ódio e fake news”.
Estas campanhas desinformativas podem ajudar a explicar a alta rejeição de Manuela – 38%, de acordo com a pesquisa Ibope de 14 de novembro, um dia antes do primeiro turno. Em uma curta campanha eleitoral, mitigar efeitos ou mesmo mudar entendimentos acerca da candidata não é tarefa fácil, ainda mais quando a artilharia inimiga não dá trégua. Essa perseguição já era apontada como empecilho para a corrida eleitoral de 2020. Em artigo publicado neste Observatório em 31 de outubro, Céli Pinto sentenciava que o segundo turno em Porto Alegre contaria com a participação de Manuela e que não seria fácil. Entre os motivos, o fato da candidata ser vítima desse tipo de violência política.
Não é difícil concluir: campanhas de desinformação permeadas por misoginia são as principais armas utilizadas contra Manuela D’Ávila. Elas representam um grande entrave para que a parlamentar, que já acumula mandatos e experiência política, consiga alcançar a prefeitura de Porto Alegre. Uma situação que evidencia a violência que atravessa as vidas das mulheres que ocupam a política. Muitas têm seus corpos enfatizados, seus atos ignorados, suas opiniões diminuídas, seus espaços cortados. Com menos de uma semana para o pleito, parece difícil que haja tempo e condições para reverter a situação, até porque ela tem raízes na cultura e nas instituições.
por João Guilherme Bastos dos Santos | nov 15, 2020 | Destaque 3, Fake News
Ao menor sinal de informações falsas em grupos de WhatsApp, surgem temores envolvendo uma segunda onda de mentiras virais, repetindo a eleição de 2018. O uso de mentiras nas disputas políticas em torno da pandemia aumenta esta expectativa, mas é justamente o contraste com a pandemia que pode nos ajudar a responder à pergunta “por que 2020 seria diferente?”. As semelhanças entre a propagação de um vírus e a circulação de informações falsas que viralizam nos ajudam a entender as várias faces do contágio em redes sociais, online e offline. Elas também nos ajudam a entender as diferenças entre a viralização em escala municipal e o sempre presente fantasma da eleição presidencial de 2018.
A trajetória do coronavírus é relativamente conhecida, chegando ao país de avião, atingindo elites e caminhando para periferias, nos ônibus ou mototáxis, juntamente com trabalhadores que tiveram contato com infectados. Plataformas e aplicativos podem ser entendidos como modais de transporte, combinados cotidianamente para que uma informação caminhe por diferentes nichos e chegue a grupos consideravelmente distantes, social e economicamente, daqueles dedicados à sua produção. Muitas vezes, no entanto, estas plataformas são tratadas como ambientes estanques e independentes, influenciados apenas por algoritmos ou robôs. Seguindo o comparativo, caso os ônibus se mostrem relevantes na propagação de um vírus, simplesmente retirá-los de circulação leva o sistema de transportes a se adaptar, mas sabemos que isso não resolve o problema em sua origem e pode levar pessoas a alternativas ainda menos seguras em suas atividades cotidianas.
Se, por um lado, é fácil compreender que dez amigos que circulam frequentemente em bares podem contaminar mais pessoas do que cem amigos que não saem de suas casas, por outro, quando falamos de aplicativos como WhatsApp, todos os grupos parecem considerados como igualmente nocivos, ignorando a pluralidade de perfis, comportamentos e conexões envolvidas. Uma informação falsa em um grupo do WhatsApp pode ser como uma pessoa infectada dentro de um ônibus: sem saber se estamos numa linha integrada à Central do Brasil ou num caminho curto na área rural, isso não nos diz absolutamente nada sobre a relevância que esta informação pode ter em um cenário maior ou suas chances de viralizar. Ignorar as redes envolvidas na viralização fortalece expectativas de que estratégias de 2018 se repitam com igual impacto nas eleições municipais, por considerar apenas a quantidade de grupos ou de mensagens como critério para possível contaminação, sem levar em conta as estruturas de grupos e plataformas interconectadas.
Do vídeo que circula no YouTube a suas versões adaptadas para o WhatsApp, chegando a pessoas que não teriam acesso à internet sem o zero rating (acordo que faz com que pessoas usem redes sem desconto na franquia de dados), há escalas, plataformas e atores que cumprem funções diferentes para que a viralização ocorra. A rede de produtores de conteúdo com milhões de seguidores no YouTube foi beneficiada pela maior parte dos links em grupos do WhatsApp nos levantamentos de 2018, em campanhas para aumento de engajamento e consequentemente vantagens na adaptação ao algoritmo de visibilidade da plataforma. Por sua vez, grupos do WhatsApp podem ser alimentados com militantes especializados através da distribuição de links em aplicativos como Telegram, mais amigáveis à automatização, criptografados e onde se pode reunir até 200 mil pessoas. Todos esses exemplos mostram que o funcionamento destas redes é interdependente.
Sem algoritmos de visibilidade ou ferramentas de microtargeting em seus grupos, o WhatsApp talvez seja o aplicativo em que esta discussão é mais urgente. A polêmica sobre retorno a escolas e cultos nas igrejas pode ser útil à compreensão da dinâmica e estrutura do aplicativo. Cada escola pode ter entre seus alunos integrantes de diferentes igrejas e, por sua vez, há pessoas de outras escolas em cada uma destas novas igrejas, marcando a composição de uma rede que cresce a cada novo nicho considerado (universidades, bairros, condomínios). Aí reside o perigo, uma vez que pessoas constituem pontes conectando os grupos em que participam e colocando alguns deles em posições centrais, facilitando a contaminação (a igreja que conjuga o maior número de pontes para de escolas seria central, por exemplo). Esta é uma das lógicas de viralização em redes de grupos de WhatsApp.
No caso das eleições, infectar um grupo numa posição central e com pessoas suscetíveis a encaminhar mensagens da campanha faz com que virais possam se espalhar rapidamente. Grupos de apoiadores segmentados são utilizados como pontes para grupos centrais, com maior alcance e possibilidade de distribuição, interferindo na probabilidade de informações viralizarem, particularmente nos casos em que disparos de mensagens são feitos mirando perfis específicos. Longe de exercer igual poder persuasivo em todos os grupos, informações tornam-se virais adequando-se a nichos específicos que, em cenários polarizados, podem replicá-la e influenciar eleições e plebiscitos. A falta de proteção aos dados pessoais abre flancos para inserção de nichos mais propensos a acreditar em informações falsas nestes grupos. Os mesmos traços de personalidade utilizados pela Cambridge Analytica no caso das eleições norte-americanas de 2016 já foram analisados para entender viralização de petições em grupos de discussão fechados, em que um mesmo conteúdo pode viralizar ou ter impacto totalmente irrelevante de acordo o perfil dos primeiros grupos em que é lançado. Este é o motivo pelo qual o uso de dados pessoais, e não propriamente o conteúdo das mensagens em si, estar no cerne de escândalos como o da CA.
Se um grupo de WhatsApp estiver cheio (256 pessoas) e cada integrante estiver disposto a encaminhar a mensagem para um outro grupo também cheio, alcançamos 65,5 mil pessoas na primeira rodada de encaminhamentos e 16,7 milhões na segunda. Diferentemente do Facebook, em que 16 milhões de pessoas podem perder acesso a uma publicação que compartilharam caso ela seja excluída, no WhatsApp, cada um destes 16 milhões possui uma cópia do conteúdo em seu próprio celular, e a qualquer momento pode colocá-lo de volta em circulação nas redes que bem entender. Outra diferença importante é a ausência de algoritmos de visibilidade que limitem a visualização do conteúdo a perfis específicos, fazendo com que, independente do quão negativa ou desinteressada tenha sido a sua reação a uma mensagem, você seja exposto novamente e replique conteúdos similares em seu celular para acessá-los.
As estratégias de 2018 foram marcadas pelo casamento entre replicação/armazenamento de informações falsas, crescente polarização eleitoral, redes propensas à viralização de conteúdo, encaminhamentos sistemáticos por parte de apoiadores em um aplicativo extremamente popular e opacidade frente às autoridades públicas. Confirmamos a relevância de grupos centrais com diferentes nichos (ambos identificados utilizando algoritmos de análise de redes) na viralização de informações falsas no WhatsApp na eleição presidencial.
No entanto, 2020 apresenta um cenário essencialmente diferente. Quando cada município tem candidatos próprios para suas prefeituras, a definição de inimigos em comum em leituras polarizadas, como candidatos a governador ou presidente, é mais difícil. Embora políticas das prefeituras estejam relacionadas à pandemia e tenham conexão com temas da discussão nacional, inserir os diversos candidatos a prefeito em narrativas contra a China, meio ambiente ou fraude nas urnas, temas que têm sido bastante recorrentes, requer um esforço maior do que retomar as narrativas antipetistas e atacar figuras como o ex-presidente Lula. Os custos da utilização de redes nacionais de apoiadores pode não ser razoável para atingir um público local e a disposição de integrantes para bombear em suas redes informações sobre a eleição de outro município tende a ser limitada.
Igrejas, por exemplo, podem ter grupos relacionados a eventos ou denominações nacionais, estaduais e municipais, interconectados e em constante interação, que possuem pontos de discussão em comum durante uma eleição presidencial. Um grupo nacional pode facilitar o trânsito de informações e sua rápida viralização em uma série de grupos locais, auxiliando o investimento em estratégias coordenadas. Mas o inverso, com milhares de municípios e seus próprios candidatos arcando com o esforço de lançar informações nacionalmente, não faria sentido. Em síntese, colocar em funcionamento aquela engrenagem de disseminação se torna mais difícil.
Adaptações para incluir conjuntos de partidos no dualismo antipetista é uma estratégia que se encaixa neste cenário. Atualmente, imagens e memes em que conservadores são instados a observar os dois primeiros números dos candidatos e descartar todos os que estão na lista de partidos “comunistas” circulam em diversos grupos, garantindo um atalho fácil para influenciar escolha eleitoral, que pode ser distribuído em vários grupos locais de modo coerente.
Além da diferença na escala da eleição, políticas específicas ligadas a estrutura da rede (como combate à inserção de pessoas em grupos a revelia, dificultando a constituição de grupos de campanha em posições centrais na rede de grupos interconectados) podem encarecer e dificultar consideravelmente investimentos deste tipo em uma campanha municipal. Precisamos considerar ainda as restrições nas possibilidades de encaminhamento de mensagens virais no aplicativo, que não resolve o problema (como mostrado no exemplo em que cada membro do grupo encaminha a mensagem para um novo grupo), mas reduz a velocidade e alcance da viralização.
Como na pandemia, veículos úteis ao trânsito rápido em escala nacional podem ser inviáveis e incompatíveis com os fluxos necessários no âmbito local. Na eleição presidencial, grupos circulavam links para redes de youtubers com milhares ou milhões de seguidores: quantos candidatos, nos cerca de 5.570 municípios do país, podem instrumentalizar uma rede como essa? Há adaptações dessa tática, como a denúncia falsa contra Guilherme Boulos usada por Celso Russomano no debate no UOL/Folha, que foi para outras redes a partir de um youtuber, na última semana. Mas quantos candidatos podem associar esta rede de produção constante a centenas de grupos segmentados no WhatsApp, com apoiadores propensos a compartilhar sistematicamente conteúdo que recebem e servir como pontes para outros grupos? E, mais importante, em quantos municípios a eleição é polarizada o suficiente para que um nicho específico influenciado por estas estratégias possa ser decisivo no resultado final do pleito?
O segundo turno e a mudança da pauta dos militantes de extrema direita, ainda ocupados entre a vacina “chinesa” e a defesa de Trump na eleição estadunidense, podem reforçar polarizações e campanhas coordenadas em diversas capitais. Sem dúvida, há espaço para surpresas em uma eleição municipal na qual candidatos são escolhidos perto da data da votação, disputando atenção com a pandemia e adaptando os eventos de campanha, em que a política nacional reverbera o impasse envolvendo uma figura aclamada como líder da direita internacional e que se recusa a reconhecer sua derrota eleitoral. É nesta conjuntura que as possibilidades de apropriação de plataformas redes sociais online e aplicativos estão inseridas, e inovações serão testadas e adaptadas, em um cenário radicalmente diferente do que viu florescer estratégias de campanha nacional pelo WhatsApp em 2018, unindo grupos do país inteiro em torno de um inimigo comum.
*João Guilherme Bastos dos Santos é pesquisador posdoc do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD) no Laboratório de Dados (C2D2). Pesquisas sobre campanhas de desinformação em redes sociais online apresentadas no European Consortium for Political Research (ECPR), Association of Internet Researchers Symposium (AoIR), European Communication and Education Research Association (ECREA), entre outros. Palestrante convidado em eventos relacionados promovidos pela Frente Parlamentar Digital e pela Câmara dos Deputados (falas disponíveis online), além da primeira plenária do Comitê Gestor da Internet no Brasil em 2020. Doutor em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com período sanduiche sob orientação de Stephen Coleman na University of Leeds (UK). Membro do Comitê Científico da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política.
por Helena Martins | nov 13, 2020 | Destaque 3, Fake News
A polarização causada por Jair Bolsonaro identificada na pesquisa “A Cara da Democracia: Eleições 2020” também é visível quanto o assunto é a mídia. De acordo com o levantamento, os entrevistados que avaliam o governo Bolsonaro como ótimo ou bom apontaram as seguintes emissoras como o seu principal meio de informação sobre política na TV aberta: Record (52%), Bandeirantes (45%), SBT (42%). A Globo aparece depois, com apenas 24%.
Os números não coincidem com a média da audiência. O Mídia Dados 2019, do Grupo de Mídia de São Paulo, registra que as emissoras mais assistidas na TV aberta são: Globo (36%), Record (15%), SBT (15%) e Bandeirantes (3%). Outras (Record News, TV Brasil, TV Câmara, TV Justiça, TV Senado, para citar algumas) somam 29%, dado que expressa dispersão da audiência, ainda que o controle da maior parte dela por parte dos maiores grupos se mantenha.
A mudança parece mostrar que as campanhas de Bolsonaro contra o Grupo Globo, que incluiu ameaça de cassar a concessão após reportagem do Jornal Nacional mencionar o nome de Bolsonaro entre os citados na investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, e sua aproximação com Record e SBT, TVs que o beneficiam desde o período eleitoral de 2018 e que têm sido agraciadas com mais verbas publicitárias, têm surtido efeito. Não deixa de ser irônica a situação, já que a Globo teve papel determinante na construção do sentimento antipolítica e no golpe que levou ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff em 2016, como já demonstrei em outras ocasiões.
Analisando a pesquisa do INCT (Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação), vemos que as opções da audiência vão migrando de acordo com a avaliação do governo. Entre os que o consideram regular, a Globo aproxima-se da liderança que efetivamente possui, com 33%. Ainda assim, os três outros grupos com maior projeção registram patamares expressivos: SBT (32%), Bandeirantes (31%) e Record (29%). Outras emissoras também foram apontadas com destaque pelo eleitorado, o que confirma a dispersão para outros canais.
Já entre os que consideram o governo Bolsonaro ruim ou péssimo, a fonte de informação sobre política na TV aberta preponderante é a Globo (43%), seguida com maior intervalo pelas demais: SBT (26%), Bandeirantes (23%) e Record (20%).
O índice de confiança da pesquisa é de 95% e a margem de erro é de 2,2 pontos para os dados nacionais. Já nos resultados regionais a margem de erro varia. Ao todo, foram consultadas duas mil pessoas entre os dias 24 de outubro e 3 de novembro.
Os dados são importantes porque, como também mostra a pesquisa, os noticiários da TV aberta seguem apontados como o principal meio de informação sobre a política (36%). Em segundo lugar, está o buscador da Google (10%), seguido de blogs de internet (10%) e Facebook (8%). O WhatsApp, que tem sido o foco das preocupações com desinformação desde 2018, aparece com 2%, atrás inclusive do Instagram, com 3%. Isso não deve nos levar a menosprezar o papel das redes sociais, mas sim notar a permanência da importância da TV, que inclusive acaba pautando a conversação nas demais plataformas. Para dar um exemplo, cerca de 80% do que se escreve no Twitter deriva de conteúdos televisivos.
Como tem sido apontado neste Observatório, dificilmente essa dinâmica de polarização, com amplo apoio a Bolsonaro, apesar de tudo, se refletirá com a mesma força nos votos. As eleições municipais têm dinâmicas mais particulares e, no caso destas, também pesa a situação da pandemia e a avaliação da atuação de governadores e prefeitos no combate a covid-19. Não obstante, os dados são interessantes para notarmos que a influência de Bolsonaro, expressão maior da extrema direita no Brasil, não é superficial. Ela tem modificado efetivamente a cultura, inclusive o consumo dos meios de comunicação, instituições centrais para a formação das identidades, valores, gostos e para o próprio debate democrático.
* Helena Martins é professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), é jornalista e doutora em Comunicação Social pela UnB, com período sanduíche no Instituto Superior de Economia e Gestão (Iseg) da Universidade de Lisboa. Editora da Revista Eptic, é pesquisadora do GT Economía política de la información, la comunicación y la cultura da Clacso e integrante do Intervozes.
Esse texto foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições de 2020, que conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras e busca contribuir com o debate público por meio de análises e divulgação de dados. Para mais informações, ver: www.2020.observatoriodaseleicoes.com.br.
por Helena Martins | nov 11, 2020 | Cidades, Destaque 3, Fake News
Até as 20h desta quarta-feira(11), pelo menos 70 mil posts no Twitter mencionaram a #LaranjalDoBoulos, denunciando suposta contratação de duas produtoras fantasmas pelo candidato do PSOL à Prefeitura de São Paulo, que nesta semana apareceu em segundo lugar na pesquisa Ibope. Poucos casos nestas eleições deixaram tão nítida a operação da desinformação como estratégia política, com passos combinados para gerar controvérsia e desgastar um candidato.
Durante debate entre os candidatos realizado pelo UOL/Folha na manhã de hoje (11), Celso Russomanno (Republicanos), que pela primeira vez apareceu em terceiro lugar, levantou o tema e disse que a informação estava “nas redes”. Como noticiou a Folha, o candidato apoiado por Bolsonaro atribuiu a informação a uma denúncia publicada nas redes sociais. A acusação foi feita por Oswaldo Eustáquio, que já foi preso por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) por espalhar notícias falsas, e publicada no canal do YouTube dele enquanto o debate ocorria – o que mostra que Russomanno sabia que isso seria feito.
Boulos nega a acusação e postou informações detalhadas sobre a contratação das produtoras, cujos pagamentos constam na prestação de contas do candidato. Para evitar a propagação do vídeo, ele entrou com uma ação na Justiça Eleitoral para pedir que este seja retirado das redes sociais. Já a Justiça Eleitoral solicitou à Polícia Federal abertura de inquérito contra Russomanno por calúnia contra Boulos, em resposta ao pedido do Ministério Público Eleitoral.
A situação também mostra outro elemento: utilização de um político como amplificador de audiência. Russomanno seguiu os passos de Bolsonaro, Trump e outros líderes de extrema-direita que usam sua projeção para espalhar mentiras, seja sobre a pandemia, eleições ou algum adversário. Os indícios mostram não apenas proximidade na linha política, mas apontam possível utilização da estrutura de desinformação que tem sido chamada de Gabinete do Ódio ou, ao menos, compartilhamento de seu modus operandi.
O post do próprio Eustáquio no Twitter é o primeiro a ser apresentado em “destaque” pela plataforma, quando buscamos a referida hashtag. O número de curtidas e compartilhamentos são contados aos milhares. Outros posts, como o do deputado estadual Douglas Garcia (PTB), que se diz representante do “Movimento Conservador”, têm ajudado a espalhar a desinformação. Portais que se apresentam como noticiosos também mobilizam o tema. Caso da Gazeta Brasil, que divulga que a situação se tornou o assunto mais comentado do Twitter, mas não traz o outro lado nem menciona as ações na Justiça.
Mas nem só de amplificadores reais uma campanha de desinformação é feita. A plataforma Bot Sentinel, que monitora atividade inautêntica no Twitter, publicou que foram identificados 217 posts mencionando #LARANJALDOBOULOS tuitados por contas não autênticas, os conhecidos robôs. A hashtag está no topo da lista das mais movimentadas por meio de mecanismos automatizados, no ranking da Bot Sentinel. Essas contas também amplificam o debate, produzindo, em geral, de forma constante e com o intervalo de tempo menor do que qualquer ser humano conseguiria, o que ajuda a espalhar o conteúdo e a fazer crescer as menções a ele nas redes.
O enredo é conhecido: alguém posta, outro com alcance compartilha, a desinformação é comentada nas redes e lá ganha projeção, com ajuda de mais amplificadores e de robôs. Conteúdos de portais que se apresentam como noticiosos são usados para dar veracidade ao caso e, muito possivelmente, ganham ampla repercussão em grupos de WhatsApp e outras plataformas. É por isso que investigar e desmontar o arranjo de grupos que usam desinformação como estratégia é tão central, entre eles o Gabinete do Ódio.
O número de casos de denúncia de desinformação tem crescido em todas as plataformas que fazem verificação e checagem. A reta final da campanha chegou e, com ela, parece que também a avalanche de desinformação.