Oswaldo E. do Amaral e Monize Arquer*
Em tempos de polarização ideológica em vários países, o mantra “política e religião não se discutem” voltou a ser dito em várias reuniões de família como forma de evitar aquela briga desagradável que separa irmãos, primos, etc., e acaba com a festa muitas vezes antes mesmo da sobremesa. Em 2017, pesquisadores nos EUA chegaram a demonstrar que a tradicional reunião do Dia de Ação de Graças por lá tendia a durar de 20 a 30 minutos menos quando as famílias misturavam republicanos e democratas.
Apesar do mantra e das boas intenções dos que não querem ver as reuniões de família consumidas por discussões intermináveis e nem sempre amistosas, cada vez mais política e religião estão conectadas no Brasil e sua relação deve ser discutida e analisada. Neste espaço, por exemplo, já mostramos como vem crescendo o número de candidatos que utilizam títulos religiosos (pastor, bispa, padre, etc.) na identificação de urna. Em tempos de campanhas eleitorais cada vez mais curtas, esse aumento indica que os candidatos julgam ser importante comunicar essa informação para o eleitor tomar sua decisão.
Uma série de trabalhos acadêmicos mostra que há alguns padrões de comportamento político e eleitoral específicos entre alguns grupos religiosos. Em 2018, por exemplo, o então candidato Jair Bolsonaro recebeu o apoio das principais lideranças evangélicas do país e foi muito bem votado nesse segmento. Estudos mostraram que ser evangélico dobrava a chance de votar em Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais com relação aos católicos. Para além disso, pesquisas realizadas pelo Ibope durante a eleição presidencial e disponíveis no banco de dados do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Unicamp mostraram também que o antipetismo era maior entre os evangélicos do que entre os católicos.
Pesquisa “A Cara da Democracia – Eleições 2020”
E em 2020? É possível distinguir preferências políticas a partir da filiação religiosa dos entrevistados? Tentamos responder a essa pergunta usando a recente pesquisa “A Cara da Democracia – Eleições 2020”, realizada pelo INCT – Democracia e Democratização das Comunicações, um consórcio de universidades e pesquisadores financiado pelo CNPq e pela Fapemig. A pesquisa foi realizada com dois mil entrevistados em todo o Brasil entre os dias 24 de outubro e 3 de novembro, e possui margem de erro de 2,2 pontos percentuais e Índice de Confiança de 95%.
Apoio ao Governo Bolsonaro é maior entre evangélicos
Começamos com aspectos relativos às eleições de 2020. Perguntados se poderiam votar em um candidato para prefeito indicado pelo ex-presidente Lula, 42% dos católicos (51% do total da amostra) e 52% dos evangélicos (23% do total) disseram que não votariam de jeito nenhum em uma pessoa indicada pelo líder petista. Quando o cabo eleitoral foi Jair Bolsonaro, o sentido se inverteu: 36% dos evangélicos e 47% dos católicos declararam que não seguiriam de forma alguma uma indicação do atual presidente.
Lógica semelhante foi encontrada no nível de aprovação da administração Bolsonaro: entre os evangélicos, o governo contou com a aprovação de 52% e, entre os católicos, de 42%.
Já com relação à preferência partidária, os evangélicos mostraram-se menos identificados com o PT do que os católicos, sendo o partido o mais mencionado entre os eleitores de uma maneira geral (16%). Entre os primeiros, 10% afirmou ser o PT o seu partido favorito e, no segundo grupo, a porcentagem foi de 17%.
O PT foi também o partido que mais foi citado quando os eleitores foram perguntados sobre a agremiação política de que menos gostavam (26%). Entre os católicos, a porcentagem foi de 25% e, entre os evangélicos, de 31%.
Com os dados de que dispomos, é possível afirmar que a religião continua sendo um componente que influencia a preferência dos eleitores e ajuda a explicar a política brasileira. Ao que parece, os padrões identificados a partir da última disputa presidencial continuam vigentes. Os eleitores evangélicos, em comparação com os católicos (os dois grandes grupos religiosos do país), continuam a apoiar mais o presidente Jair Bolsonaro e seu governo, e a rejeitar em maior porcentagem o PT e o ex-presidente Lula.
Conservadorismo social?
A influência de condições sociais sobre o comportamento eleitoral não é novidade na Ciência Política, e a religião não seria uma exceção. O fato dos eleitores escolherem candidatos que defendam suas demandas está diretamente ligado ao princípio da representatividade. Por exemplo, quando perguntados se pessoas do mesmo sexo poderiam se casar, 64% dos evangélicos discordaram, enquanto a porcentagem geral entre os entrevistados foi de 40%. Natural, então, que essa seja uma questão que preocupe os eleitores evangélicos em maior proporção do que os católicos.
Mas, se por um lado há a importância do princípio representativo de atender demandas específicas da população, por outro também é importante verificar os limites dessas demandas, principalmente quando tratamos de questões relacionadas à moralidade, algo que se relaciona diretamente com princípios religiosos. Isso porque, partindo do princípio da laicidade do Estado, presente na Constituição Federal de 1988, é importante ficarmos atentos para que pautas morais relativas à vida privada não levem a políticas públicas universais que privem ou limitem a liberdade e os direitos da população.
Ao defender uma visão tradicional de família e adotar uma postura conservadora nos costumes, o governo Bolsonaro e as bancadas religiosas parecem conseguir mobilizar e responder a uma parcela importante da sociedade. Se essa postura será capaz de criar uma identidade política duradoura entre alguns grupos ainda é cedo para dizer. Por agora, parece suficiente concluir que política e religião estão juntas e misturadas o bastante para atrapalharem muitos encontros de família e que muitas sobremesas ficarão intocadas – uma pena.
Oswaldo E. do Amaral é professor de Ciência Política na Unicamp e diretor do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da mesma instituição.
Monize Arquer é doutora em Ciência Política pela Unicamp, com período sanduíche na Universidade de Oxford, e pesquisadora do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop – Unicamp). Atua em estágio pós-doutoral no INCT/IDDC.
Nota metodológica: todas as diferenças porcentuais mencionadas no texto são estatisticamente significativas a 95%. Os católicos representam 51% do total de respondentes e os evangélicos, 23% do total.
A pesquisa “A Cara da Democracia: Eleições 2020”, do INCT-Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação e do Cesop/Unicamp foi realizada entre os dias 24 de outubro e 04 de novembro de 2020. A pesquisa entrevistou duas mil pessoas por telefone, tem grau de confiança de 95% e margem de erro de 2,2%. Todas as diferenças percentuais mencionadas no texto são estatisticamente significativas a 95%. Os católicos representam 51% do total de respondentes e os evangélicos, 23% do total.