Eleições distorcidas: a marginalidade eleitoral no Brasil
Antonio C. Alkmim*
As abstenções, votos brancos e nulos registrados no primeiro turno alcançaram mais de 45 milhões de eleitores, um terço do eleitorado. Entretanto, este não é o único indicador para a não participação eleitoral. Antes de decidir se abster ou negar seu voto para algum partido ou candidato, o indivíduo tem que ter a sua cidadania assegurada pelo registro eleitoral. Mas milhões de pessoas deixam de exercer este direito.
Confrontando o número de eleitores divulgados pelo TSE e a estimativa para a população em idade de voto do IBGE para 2020, podem estar nesta situação 16 milhões de brasileiros. Seriam excluídos ou marginais do sistema de voto no país 10% da população em idade de voto.
Mas não é tão simples assim. De acordo com o parágrafo 14 da Constituição Federal, o voto é facultativo entre 16 e 17 anos, acima dos setenta, para analfabetos e proibido para os estrangeiros, presidiários e militares da ativa. Observando a permanência provisória de falecidos no cadastro eleitoral que são removidos a cada três pleitos seguidos, assim como os registros cancelados, esta soma pode ser próxima dos 16 milhões. Pode e mesmo assim a marginalidade eleitoral aumentar, em função da entrada e saída para aqueles para quem o voto é facultativo, por exemplo.
O que chama atenção é que marginalidade eleitoral quase dobrou nos últimos dez anos. Parte de 6,8% em 1991, cai para 2,6% no ano 2000, e a partir daí aumenta para 5,5% em 2010, dobrando para 10,1% em 2020. Enquanto o ritmo de crescimento dos eleitores na última década foi de 9,3%, o crescimento populacional para a população de 16 ou mais anos foi de 14,8%. Como explicar esta diferença?
Alguns cientistas políticos brasileiros tatearam no tema da exclusão eleitoral. Entretanto, a questão encontra-se ainda na sombra da literatura científica e intelectual no país.
Taxa de marginalidade eleitoral. Brasil, 1991-2020
Bolivar Lamounier, em um estudo de 1978, sobre as eleições na cidade de Presidente Prudente em São Paulo, realizada quatro anos antes, adotou o conceito de marginalidade eleitoral, evidenciado pela ausência da habilitação eleitoral. Wanderley Guilherme dos Santos e Olavo Brasil Lima Junior concentraram-se nas abstenções, votos brancos e nulos, denominados alienação eleitoral. Julia Stedler retoma a linha de Lamounier e questiona qual seria o eleitor desejado pelo país, fruto de um processo decisório e histórico.
A exclusão eleitoral estaria relacionada a fatores socioeconômicos tais como a escolaridade e renda, embora não reduzidos a estes motivos. Aspectos como o desinteresse ou rejeição à política também seriam relevantes. E ainda problemas ligados à transferência de residência eleitoral, como a mudança de cidade ou estado.
A PNAD de 1988 pesquisou a participação social no país e chegou a uma taxa de marginalidade eleitoral de 10% da população cujo voto era obrigatório. Verificou-se que o indicador era maior para as mulheres, os mais jovens, idosos, mais pobres, menos instruídos, desempregados, negros e pardos, dentre outros segmentos.
Já a taxa calculada em 2020 mostra-se menor entre as mulheres, que representam a maioria de 52,5% do eleitorado. O que atesta uma redefinição no papel feminino observado ao longo de décadas.
Taxa de marginalidade eleitoral, por sexo. Brasil, 1991-2020
Fonte: https://www.tse.jus.br/eleitor/estatisticas-de-eleitorado/estatistica-do-eleitorado
Quanto à idade, a taxa mostra-se maior para os mais jovens, até 20 anos, que representam 10,9% da população e somente 5,2% dos eleitores. Entre aqueles entre 21 e 34 anos, em idade adulta situa-se em torno da média dos 10%. Este grupo etário representa 32,5% da população e 29% do eleitorado. A partir daí a taxa decresce entre 35 e 69 anos (58,7% da população e 56,6% do eleitorado), estabilizando-se entre os idosos, chegando aos 70 anos ou mais com a igual proporção de 9,1% para a população e o eleitorado. Considerando os grupos etários, a marginalidade eleitoral é mais alta para os mais jovens e menor para os mais velhos, a partir dos 35 anos.
Taxa de marginalidade eleitoral, por grupos de idade. Brasil, 2020
Fonte: https://www.tse.jus.br/eleitor/estatisticas-de-eleitorado/estatistica-do-eleitorado
Por outro lado, embora o eleitorado tenha crescido 9,3% entre 2010 e 2020, os mais jovens de até 34 anos apresentaram uma evolução negativa na distribuição, ao passo que a partir de 35 anos há um crescimento positivo. Isto significa que, além de mais excluídos, a participação dos mais jovens nas decisões eleitorais diminuiu na última década. E isto não se deve apenas ao efeito do envelhecimento da população ao longo do tempo.
Crescimento relativo do eleitorado por grupos de idade. Brasil 2010-2020
Fonte: https://www.tse.jus.br/eleitor/estatisticas-de-eleitorado/estatistica-do-eleitorado
Quanto à escolaridade dos eleitores divulgada pelo TSE, esta não coincide com as informações da PNAD de 2009, especialmente para o grupo com ensino médio incompleto. Seriam 22,4 milhões de eleitores, para o tribunal, contra cerca de 13 milhões de pessoas com 16 anos e mais, estimados a partir da última PNAD de 2019. Uma impossibilidade.
Já o número de eleitores analfabetos mostra-se coerente. São seis milhões de eleitores e 11 milhões de pessoas com 16 anos e mais que não sabem ler e escrever. Deixam de estar inscritos, portanto, 5 milhões de eleitores, sendo o voto facultativo. Um número elevado, mesmo considerando que o analfabetismo afeta os mais idosos. Esta seria a principal marca da exclusão eleitoral no país.
Em síntese, os indicadores apresentados, mostram a marginalidade eleitoral atual no país, maior entre os homens e os mais jovens. E expressiva entre os de mais baixa instrução, especialmente os analfabetos, mesmo considerando que para estes o voto é facultativo.
Este problema, de certa forma invisível para a sociedade brasileira, evidencia mais uma marca das desigualdades existentes no país. Ao invés da estimativa indireta, mensurar e detalhar este fenômeno com pesquisas sociais sobre a participação social e política da população torna-se fundamental para que a democracia brasileira não seja um espelho socialmente distorcido, sem sequer nos darmos conta.
* Antonio C. Alkmim é cientista político e professor da Puc-Rio.