Com disputa acirrada, candidatos apelam para desinformação em Fortaleza

Com disputa acirrada, candidatos apelam para desinformação em Fortaleza

A disputa está acirrada entre os candidatos à Prefeitura de Fortaleza Capitão Wagner (PROS), Luizianne Lins (PT) e Sarto (PDT). Na última semana, as campanhas de Wagner e Freire (PSL), que vinham tendo como centro a apresentação dos candidatos, partiram para o ataque, lançando mão de informações descontextualizadas, incompletas ou mesmo desinformativas.

A maior controvérsia gira em torno do primeiro colocado, Capitão Wagner, por uma discussão travada nas redes e nas emissoras de rádio e TV com o próprio governador Camilo Santana (PT). Em entrevista ao programa de TV Ponto Poder na terça-feira (13), Capitão Wagner negou ter apoiado o movimento de policiais militares que culminou na paralisação ocorrida em fevereiro deste ano no Ceará.

“A gente foi contra a realização desse movimento. Em nenhum momento eu me posicionei a favor de qualquer paralisação em Fortaleza ou no Estado do Ceará. Eu tenho muita responsabilidade nessa questão”, afirmou.

O governador utilizou as redes sociais para rebater: “Não é verdade. [Capitão Wagner] Tanto liderou o motim de 2011 como teve participação direta nesse último motim. […] Foi um dos atos mais covardes já praticados contra a população”, postou.

Mensagens publicadas no twitter de Camilo Santana, governador do Ceará, no dia 14 de outubro


Captura de tela feita em 22 de outubro, do perfil https://twitter.com/CamiloSantanaCE

O capitão inicialmente evitou retrucar, possivelmente pela dificuldade de sustentar a afirmação e necessidade de afastar a imagem negativa da greve da PM. Mas a questão ganhou as redes sociais, com ampla circulação de vídeos apócrifos críticos a ele em grupos de WhatsApp.

Logo após a divulgação da pesquisa DataFolha, no dia 17 de outubro, que confirmou a indefinição do cenário eleitoral na cidade, diferentes candidaturas reforçaram menções ao fato. Na TV, desde o dia 21, postagens de Camilo passaram a ser utilizadas por Sarto, em repetidas inserções ao longo da programação das emissoras.

Wagner, então, apontou tratar-se de “fake news” e chegou a criar um site específico para “que vocês possam se informar sobre as mentiras que têm sido espalhadas sobre mim”, como anunciou em vídeo na rede social. Retrucando, Camilo publicou imagens de matérias, entre as quais uma que destaca projeto de Wagner como deputado federal para anistiar participantes da greve.

A estratégia do candidato apoiado por Jair Bolsonaro faz lembrar a de Donald Trump, que passou a utilizar a expressão “fake news” contra a cobertura crítica em relação a ele pela imprensa, tentando fazer crer que as críticas não são mais que intrigas da oposição. O problema é que esse tipo de discurso pode convencer parte do seu eleitorado, especialmente em um contexto de polarização como o vivido nos Estados Unidos e também no Brasil.

Mas um olhar atento evidencia as contradições. No site oficial, o candidato retirou a foto em que aparece com lideranças do movimento e substituiu por uma imagem apenas descritiva das suas pautas de segurança (ver imagens abaixo).

Na foto, Wagner, o deputado estadual Soldado Noélio e um dos líderes da paralisação. Imagem que estava no site do Capitão Wagner no início da campanha. https://capitaowagner.com/

Imagem com texto sobre segurança pública, inserida para substituir a imagem anterior. Site do Capitão Wagner. https://capitaowagner.com/

Ainda que tenha utilizado o programa no Horário Eleitoral Gratuito para negar participação na greve, usando vídeo da época em que diz que “Eu não vim aqui para inflamar a greve, vim aqui para solucionar o problema”, é difícil sustentar a afirmação, tendo em vista o histórico com o grupo e, inclusive, a participação em sua chapa de vereadores de pessoas vinculadas à paralisação.

Outra fala de Wagner amplamente repercutida e questionada refere-se à liberação de, segundo o candidato, R$ 43 milhões de emenda parlamentar para a saúde pública do Estado, no primeiro semestre de 2020, dos quais R$ 25 milhões teriam sido destinados ao enfrentamento à Covid-19. Pesquisando no site Siga Brasil, vê-se que a soma das emendas do deputado totalizam menos de R$ 16 milhões, com R$ 3 milhões dedicados às ações contra pandemia. Destes, R$ 9,3 milhões foram executados. Do empenhado, nem tudo foi para saúde. Há emendas dedicadas ao Comando da Marinha, administração do Ministério da Justiça e Segurança Pública e outras pastas. No site do capitão, ele apresenta documento assinado de próprio punho para comprovar os recursos. No entanto, a Justiça determinou a retirada da propaganda de Wagner sobre o suposto repasse à saúde.

Ataques ao PT

Também subindo o tom nas agressões, pelo menos desde o dia 18, o representante do PSL, Heitor Freire, que figura com 1% na pesquisa DataFolha, tem usado programas eleitorais para atacar adversários. O candidato que pretende “endireitar Fortaleza” dirige-se indiretamente à candidata petista, Luizianne Lins. Em uma das propagandas no rádio, menciona “candidata vermelhinha querendo voltar pra prefeitura” e “galega pulso frouxo”.

Nesta semana, Luizianne acionou à Justiça e, segundo divulgado em suas redes sociais, ganhou liminar determinando a exclusão de vídeo difamatório que circulava em grupos do Facebook e do Whatsapp. Na decisão também é solicitada a identificação do administrador e responsável pela postagem. O jornal O POVO detalhou que “a Justiça Eleitoral bloqueou dois números de telefone, um responsável por grupo de WhatsApp chamado ‘Grupo Mercadinho do Bairro’, o outro pela postagem de vídeo com ataques pessoais à candidata à Prefeitura de Fortaleza”.

Assim como em 2018, a reta final do pleito não só repete a redução da discussão política, mas também estratégias que pretendem confundir o eleitor, sejam aquelas adotadas abertamente na TV e rádio ou as que circulam mais ocultas nas redes sociais. É cedo para saber se a rede montada naquela campanha está sendo usada ou se terá o mesmo impacto em pleitos pulverizados como são as eleições municipais, com questões locais que dificultam a padronização das mensagens e a viralização nacional delas. Mas o exemplo da eleição fortalezense, na qual a polarização tem se reproduzido, é um indício preocupante.

Quais candidatos lideram nos gastos em redes sociais?

Quais candidatos lideram nos gastos em redes sociais?

Desde 4 de agosto, gastos com anúncios no Facebook e Instagram ultrapassam R$ 14 milhões. Apenas entre os dias 9 e 15 de outubro, foram mais de R$ 4,3 milhões em impulsionamentos de conteúdos sobre temas sociais, eleições ou política nessas redes. Os maiores anunciantes foram dois candidatos à Prefeitura de Fortaleza: Sarto (PDT) e Capitão Wagner (PROS), que juntos aportaram mais de R$ 300 mil na última semana. Entre os políticos, o terceiro lugar em investimento nesse serviço é uma candidata a vereadora no Recife, Andreza Romero (PP). Em quarto, Célio Studart (PV), também candidato à prefeitura da capital cearense. Os dados foram extraídos da Biblioteca de Anúncios do Facebook.

Apesar dos destaques cearenses, São Paulo é o estado que lidera quando somados os recursos empregados na plataforma. Ao todo, foram mais de R$ 980 mil em uma semana. Mas, enquanto nesse caso há diversos candidatos impulsionando, no Ceará a prática é mais restrita e o volume dedicado por poucos políticos é enorme. A soma dos gastos ultrapassa R$ 587 mil, mas apenas aqueles três candidatos à prefeitura concentram mais de 60% do total.

Pouco conhecido pelo grande eleitorado, embora acumule mandatos e presida atualmente a Assembleia Legislativa, Sarto dedicou mais de R$ 178,5 mil no período analisado. Os anúncios mais recorrentes trazem textos como “Conheça um pouco mais sobre a trajetória de Sarto e conheça as propostas que vão fazer Fortaleza cada vez melhor” e “O Time 12 só cresce!”. Também publicações com o prefeito Roberto Cláudio (PDT) e sobre o resultado da pesquisa Ibope, que mostrou Sarto em terceiro lugar, com 16% das intenções de voto, foram estimulados. Nos últimos dois dias, o candidato passou a publicar, além de conteúdos com caráter de apresentação, propostas sobre saúde e mobilidade.

Capitão Wagner, por sua vez, pagou em uma semana R$ 123,6 mil em anúncios. Liderando as pesquisas de intenção de votos, Wagner tem buscado se apresentar de forma mais humanizada e diversa, evitando a monotemática imagem de capitão que o consagrou, mas que impõe limites para ampliação do eleitorado e está arranhada devido à repercussão negativa da última greve de policiais militares no Ceará, no início do ano.

A estratégia de diversificação de imagem de Wagner se revela na TV, onde o candidato tem apresentado programas que ressaltam sua atuação como professor, e também nos anúncios nas redes sociais, mais diversos do que o que se vê no caso de Sarto. Fotos com família e animais, chamados para lives de comentários sobre filmes e outros conteúdos, muitos com estética jovial, foram impulsionados. Nenhum anúncio na última semana fez menção ao presidente Jair Bolsonaro, que declarou apoio ao capitão ao longo do período analisado, o que é um indício de que esse apoio está sendo trabalhado em espaços de comunicação mais segmentados, como grupos de WhatsApp.

Interessante notar que, a partir do dia 16 de outubro, Wagner passou a impulsionar conteúdo sobre a pesquisa do instituto Paraná Pesquisa que o colocava com 36% das intenções de voto. Ocorre que a pesquisa foi divulgada no dia 12 e, no dia 14, levantamento do Ibope reduziu sua projeção, apontando ter 28%. Fica claro que Wagner prioriza o conteúdo favorável nas redes, tendo investido apenas nesse anúncio entre R$ 5 e 6 mil.

No caso de Célio Studart, que aparece em 5o lugar no Ibope, foram mais de R$ 56,7 mil destinados à ampliação da circulação de seus conteúdos no Facebook e Instagram. Postagens sobre proteção animal, com fotos do candidato com cachorros, estão entre as mais recorrentes, assim como posts com o número do candidato e a promessa de “acabar com a indústria da multa em Fortaleza”.

Studart utilizou frequentemente o impulsionamento desde a eleição passada e hoje tem uma audiência ampla, com quase 653 mil seguidores no Facebook e mais de 174 mil no Instagram, registrando também bastante engajamento por meio de comentários. Wagner, por sua vez, tem no Facebook e no Instagram 298,5 mil e 195,8 mil seguidores, respectivamente. Já Sarto possui, nas respectivas redes, 24,7 e 26,8 mil seguidores.

A aposta desses candidatos nas redes pode ser dimensionada quando os aportes são comparados com o top dez dos que mais gastaram dinheiro no Facebook até agora. Tendo em vista os gastos desde 4 de agosto, Sarto, Wagner e Célio somam, respectivamente, mais de R$ 285 mil, R$ 161 mil e R$ 83 mil. No Recife, Mendonça Filho (DEM) gastou R$ 73 mil. Rodrigo Valadares (PTB), prefeiturável em Sergipe, R$ 57 mil. Rogério Santos (PSDB), candidato em Santos, mais de R$ 66 mil. Ricardo Nicolau (PSD), candidato em Manaus, quase R$ 57 mil. Em Belo Horizonte, Rodrigo Paiva (Novo), investiu R$ 33 mil. Sozinho, o Partido Novo empregou quase R$ 70 mil desde agosto em suas páginas oficiais. Heitor Freire (PSL), também candidato em Fortaleza, quase R$ 30 mil, sendo R$ 25 mil apenas na última semana.

Não são apenas candidatos à prefeitura que estão adotando essa estratégia. Na lista dos 10 maiores, há também Andreza Romero (PP), candidata à vereança no Recife, que se apresenta em todas as postagens como defensora da causa animal.

A centralidade da comunicação como estratégia para a eleição é nítida. Em agosto, o Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco (TRE-PE) aplicou multa de R$ 15 mil como condenação do deputado estadual Romero Lima Bezerra de Albuquerque (PP) e de Andreza, sua esposa, por propaganda eleitoral antecipada. Isso porque foram espalhados outdoors destacando a imagem de Andreza, então pré-candidata. Com impulsionamentos, a campanha de Andreza gastou mais de R$ 95 mil desde agosto, dos quais R$ 70 mil entre 9 e 15 de outubro, segundo o Facebook. Em Fortaleza, Natália Rios (PDT) dedicou mais de R$ 38 mil desde agosto, sendo R$ 21 mil na última semana.

Impulsionamento na legislação eleitoral

Os dados sobre impulsionamento foram obtidos a partir de análise da Biblioteca de Anúncios do Facebook, corporação que também é dona do Instagram, por isso os gastos se referem ao volume de recursos destinados para ampliar a circulação nas duas redes sociais.

Ao impulsionar, os candidatos pagam para ampliar a visibilidade das postagens. Eles também podem, por meio de pagamento, obter priorização de conteúdos em sites de buscas como o Google. Como tem sido perceptível ao acessar o YouTube neste momento das eleições, há muita gente pagando para ter propaganda veiculada também na principal plataforma de vídeos do Brasil e do mundo.

Para a alegria dessas plataformas, que passaram a ganhar muito dinheiro nas eleições, essas práticas foram permitidas com a Minirreforma Eleitoral (Lei 13.488) de 2017. Depois, a Resolução 23.551/2017 detalhou que as mensagens sobre eleições deveriam estar identificadas nas redes. Definiu, por isso, que deveriam conter rótulo específico com informações sobre o candidato ou partido, como os nomes e o CPF ou CNPJ do patrocinador.

Mas há controvérsias, por exemplo, quanto à possibilidade de impulsionamento no período da “pré-campanha”, o que dados da página de Sarto, de seus apoiadores e de outros candidatos indicam que houve, embora a regra proíba. Além disso, ainda não está claro o entendimento quanto ao abuso do poder econômico nesses casos, apesar da evidente quebra de isonomia de oportunidade entre concorrentes.

Além da questão jurídica, no centro da questão está o reforço da desigualdade nas eleições. Como argumentei anteriormente neste Observatório das Eleições, tais mecanismos potencializam uma visibilidade artificial baseada no poder econômico. Afinal, é preciso pagar para levar. No caso, para alcançar o eleitorado.

É claro que determinadas estratégias podem acabar ganhando notoriedade e viralizando de forma orgânica, mas não é essa a tendência dominante no uso das redes. Afinal as plataformas de redes sociais adotam modelos de negócios cada vez mais atrelados à monetização de conteúdos. O engajamento orgânico que antes poderia privilegiar candidatos, mesmo aqueles com poucos recursos, tem sido mais difícil, até porque para alcançar a própria audiência é preciso pagar. E, seguindo a lei da oferta e da procura que rege também as plataformas, pagar caro.

Assim como a legislação proíbe a contratação e veiculação de anúncios no rádio e na TV, permitindo apenas a ocupação do espaço do Horário Eleitoral Gratuito e das inserções definidas pela Justiça Eleitoral, é necessário enfrentar esse tema na internet, que está longe de ser, como muitos ainda pensam, um espaço livre e no qual a disputa se dá de forma igualitária entre as diferentes candidaturas.

Não há igualdade de oportunidades quando o dinheiro é o critério de acesso à visibilidade. Visibilidade que foi bastante reduzida no caso da TV (vale lembrar a redução na duração do Horário Eleitoral Gratuito, que de 1h passou a apenas 10 minutos, mantendo a divisão baseada no tamanho da bancada federal de cada partido) e que passa, cada vez mais, pela internet, até pela sua constante presença no cotidiano de boa parte da população.

Organizações que lutam pelo direito à comunicação, como o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação, defendem restrições para o impulsionamento, especialmente no período eleitoral. “Rever a liberação do impulsionamento pago nas plataformas digitais, principalmente no contexto eleitoral, já que ele acaba privilegiando candidatos que possuem mais recursos, além de facilitar a propagação de conteúdos, inclusive desinformativos, e de dar margem à ação de ‘fábricas de fake news’” é uma das propostas para o combate à desinformação que consta no livro “Desinformação: crise política e saídas democráticas para as fake news”, publicado pelo Intervozes em 2020. O coletivo também entende que, em períodos eleitorais, em caso de utilização de impulsionamento, as empresas intermediárias de oferta de conteúdo devem manter “registro de tudo o que for impulsionado e que, contendo menções nominais a candidatos, partidos ou coligações, atinja patamar expressivo de disseminação”.

Debate público opaco

O impulsionamento tem relação com a desinformação porque é por meio desse mecanismo que as candidaturas podem fazer os chamados “dark posts”, postagens que não constam nas próprias páginas e que são encaminhadas para o público definido por elas, uma mediação que é feita de forma pouco transparente pelas plataformas, que são os agentes que efetivamente fazem a distribuição e constroem os públicos, a partir dos dados que coletam deles. Como não são efetivamente públicas, essas postagens podem conter informações falsas e não serem objeto da avaliação pública.

Tendo em vista o escândalo envolvendo as campanhas de Donald Trump e Jair Bolsonaro, entre outras, nas quais esses mecanismos foram largamente utilizados, passou-se a cobrar mais transparência das plataformas como forma de combater o uso para desinformação. Uma das respostas do Facebook foi exatamente a criação da Biblioteca de Anúncios.

Além disso, em setembro deste ano, a rede adotou mais medidas de transparência relacionadas às eleições. A primeira é o relatório de transparência, com informações sobre gastos na plataforma. A outra é a disponibilização de uma Interface de Programação de Aplicativo (API, na sigla em inglês) para personalizar pesquisas. Foram estes os mecanismos utilizados para a obtenção dos dados apresentados neste texto.

Nas páginas analisadas, não foram verificados posts com desinformação, ainda que haja uso descontextualizado de informações sobre pesquisas de intenção de votos. Porém há uma questão a ser destacada: a opacidade do debate público.

A implementação de ferramentas de distribuição segmentada de informações por meio do pagamento pode fazer com que você receba um conteúdo e eu, outro. O que chega sobre eleições pode ser absolutamente diferente para cada pessoa. Essa lógica tende a fortalecer a criação de bolhas e, com isso, a ausência de debate entre as diferentes visões. São questões a serem avaliadas e respondidas, tendo em vista a experiência de pleitos tão marcados por aplicações digitais. Agora, já é possível afirmar que a desigualdade também impera nas redes e pode desequilibrar a disputa nas eleições.

Primeira semana de campanha é marcada por fake news requentadas sobre urnas

Primeira semana de campanha é marcada por fake news requentadas sobre urnas

Campeãs em número de circulação nas eleições de 2018, campanhas de desinformação sobre urnas eletrônicas são novamente vistas aos montes na internet. Observando os chats de WhatsApp e os portais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e das principais agências de checagem de fatos em operação no Brasil, fica claro que, ao longo da primeira semana de campanha, conteúdos já bastante conhecidos e rotulados como falsos mas que atingem a credibilidade do sistema eleitoral têm sido novamente utilizados.

O Tira-Dúvidas Eleitoral do TSE, assistente virtual da Justiça Eleitoral acessível por meio do WhatsApp, apresentou neste domingo (4) os seguintes destaques sobre a primeira semana de campanha: “É falso que a Lenovo comprou a Positivo, fabricante de urnas das eleições de 2022”; “Escolhida para produzir urnas eletrônicas, Positivo não foi comprada pela chinesa Lenovo” e “Lenovo nunca comprou a Positivo, ao contrário do que diz boato”.

Urnas eletrônicas no centro das fake news

Na página “Fato ou Boato”, iniciativa do TSE em parceria com diversos agentes para combater a desinformação, as urnas eletrônicas também tiveram destaque. Anulação de mais de 7 milhões de votos nas eleições, impossibilidade de auditoria das urnas e suposta entrega de códigos delas para Venezuela foram alguns dos conteúdos desmentidos.

Imagem da página Fato ou Boato (TSE) no dia 05 de outubro.

Tendo em vista a opacidade das plataformas digitais, que podem direcionar conteúdos exclusivamente para determinados usuários, e também a diversidade de sites, canais, contas e grupos, não é possível cravar o número de compartilhamentos ou saber se outros conteúdos falsos não viralizaram ainda mais.

Mas a análise de diferentes sites de verificação possibilita uma amostra importante do que vem ocorrendo, já que cada um desenvolve sua própria metodologia de coleta e análise de posts, chegando a distintas fontes. Destaco o que foi produzido sobre o que circulou sobre eleições nas redes, sem considerar, por isso, análises dos verificadores sobre falas de políticos em debates, situação já abordada neste Observatório das Eleições.

Na Agência Lupa, considerada a primeira agência de fact-checking do Brasil, as eleições aparecem em mensagens sobre urnas eletrônicas. “Circula nas redes sociais um post que diz que somente Brasil, Cuba e Venezuela usam urnas eletrônicas em eleições”, informa.

Segundo checagem da agência, de acordo com o Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (International IDEA), 26 países, como Índia e Peru, usam urnas com tecnologia eletrônica para eleições gerais, de um total de 178. Outros 16 utilizam esses equipamentos em pleitos regionais.

O Projeto Comprova, que reúne jornalistas de 28 diferentes veículos de comunicação brasileiros, deu o mesmo destaque: “Postagem no Facebook afirma que, além do Brasil, apenas Cuba e Venezuela usam urnas eletrônicas”. Fato ou Fake, do Grupo Globo, também verificou mensagens sobre urnas eletrônicas. Uma delas fazia referência a possível veto do Paraguai à utilização desses equipamentos brasileiros. Nesses casos, teorias da conspiração envolvendo outros países saltam aos olhos.

Na Aos Fatos, projeto mais abrangente de verificação, mais uma vez há referências e explicações sobre as urnas. A agência informa que, na primeira semana das eleições, foram encontradas 17.891 publicações consideradas de “baixa qualidade” sobre o pleito, de um total de 658.707 mensagens coletadas no período. Os termos que mais apareceram na coleta foram: Bolsonaro (851 menções), presidente (610) e candidato (606). Candidatos (510), Trump (426), pandemia (381) e prefeito (400) foram outros recorrentes.

A campanha ainda está fria e o fato de termos o noticiário bastante pautado pelos debates nacional, com destaque para a indicação de Kassio Nunes por Jair Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal (STF), e internacional, com as eleições norte-americanas, explicam isso.

Partido Novo, João Dória, Manuela D`Ávila e até Jesus foram tema de desinformação

Além de conteúdos sobre a urna, outros temas aparecem. No dia 2, o destaque foi uma mensagem referente ao partido Novo, alegando que um representante dele teria participado da criação de conselho político com partidos de esquerda contra Bolsonaro durante um encontro do movimento Direitos Já – Fórum da Democracia, o que não é confirmado pelo partido. Publicações do tipo acumulavam cerca de 6 mil compartilhamentos até aquela sexta, segundo a agência.

Outra checagem mostrou que são falsas as mensagens que apontam que o governador de São Paulo, João Doria, seria rejeitado por 98% da população.

Uma montagem de foto de Manuela D’Ávila (PCdoB), candidata à Prefeitura de Porto Alegre, vestindo camiseta com dizeres “Jesus é travesti” também voltou a circular. Até o dia 28, publicações recentes já acumulavam mais de 18 mil compartilhamentos com a mesma montagem, que foi recorrente em 2018, época em que também circulou informação de que a blusa continha, na verdade, a frase “rebele-se”.

Além desta, “Aos Fatos identificou, por exemplo, que a publicação que alegava que D’Ávila teria afirmado ser “mais popular que Jesus” foi compartilhada ao menos 10 mil vezes nas últimas 48 horas”, informa publicação do dia 29.

O fato de conteúdos notoriamente requentados serem novamente utilizados é um indício de que continuam servindo aos interesses de grupos que promovem campanhas de desinformação e de que estes seguem apostando na tática de fragilizar a confiança no sistema eleitoral e na própria democracia. Por outro lado, a situação demonstra os limites das checagens, seja porque não conseguem levar a verificação a quem teve contato com o conteúdo falso ou porque os receptores, mesmo sabendo ou desconfiando da veracidade de algo, participam deliberadamente das ações de compartilhamento.

A adesão da população à essas notícias pode ter várias explicações, entre elas a reafirmação de posicionamentos previamente existentes. Além disso, escreve Giuliano da Empoli em Engenheiros do Caos (Vestígio, 2019), para população que adere a líderes políticos de viés populista, “a verdade dos fatos, tomados um a um, não conta. O que é verdadeiro é a mensagem no seu conjunto, que corresponde a seus sentimentos e suas sensações”.

No YouTube predominam ataques à esquerda

A Aos Fatos produz um radar que também mapeia conteúdos categorizados como de baixa qualidade no YouTube. No mapeamento desta plataforma, aparecem com destaque ataques à esquerda. Na primeira semana das eleições, a agência apontou dois conteúdos como com “alta probabilidade” de ser desinformativo.

Um deles ganhou o título “Freixo capitalista e Felipe Santa Cruz jogando o jogo”. O vídeo faz referência a uma situação verídica: a controvérsia em torno da doação de Armínio Fraga e de outros empresários a candidato do PSOL. Freixo disse que, se a candidatura fosse impugnada, poderia deixar o partido. O youtuber, por sua vez, sentencia que o deputado “ameaçou sair do PSOL caso o partido não aceitasse doações polpudas de bilionários banqueiros brasileiros”. Depois, segue fazendo associações aos negócios da família de João Moreira Salles na extração de nióbio, cineasta que também fez doação para aquela candidatura, e apresenta posicionamento de Bolsonaro a favor da ampliação da exploração do minério, como se isso fosse prejudicar os Salles. A tese sustentada é que isso juntaria PSOL e Moreira Salles por dinheiro contra o presidente.

Na segunda parte do vídeo, o assunto é a fala do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, que classificou como qualificado o indicado de Bolsonaro ao Supremo. O posicionamento é apresentado como uma pecepção de “oportunidade” para piorar o que o youtuber aponta ser “um racha enorme na base conservadora por causa dessa escolha”, pois parte dela esperava alguém “claramente conservador e de direita, e esse é o motivo da nossa decepção”. Nesses casos, o que há é a abordagem distorcida de informações baseadas na realidade, mas manipuladas, com recursos ao exagero e à descontextualização.

O outro vídeo associado às eleições classificado como com “alta probabilidade” de ser desinformativo chama-se “Quem são os partidos da esquerda – cuidado”. Um apresentador expõe áudio atribuído ao pastor Silas Malafaia em que alerta “aos cristãos” sobre portaria do governo Bolsonaro sobre aborto e diz que ela impediria apenas a realização de interrupções não previstas em lei, o que não é verdade.
O youtuber menciona ação de partidos de esquerda no Supremo contra a portaria e pergunta: “é nesses partidos que você vai votar?”. Aborto, ideologia de gênero, família, Deus. A cantilena já conhecida é apresentada. E conclui: “se você é a favor da família, se você tem Deus no coração e na sua família, é obrigação orientar as pessoas em quem tem que votar e em quem não tem que votar”. Mais uma vez, há combinação de mentira, descontextualização e exagero, a partir de referência ao real, o que mostra a complexidade da desinformação e a multiplicidade de estratégias utilizadas para convencer e influenciar o público.

Estudos têm apontado que o YouTube favorece canais de extrema-direita por meio de seus algoritmos, recomendando-os porque conteúdos extremados, exagerados ou apelativos geram engajamento e mantêm a audiência conectada e produzindo dados. No período das eleições de 2018, reportagem do The Intercept Brasil revelou que dos dez canais que mais cresceram na plataforma metade era dedicada a promover Bolsonaro e outros extremistas de direita. Se está claro que velhas fake news estão sendo reutilizadas, importaria saber se a programação dos algoritmos também. Dada a opacidade das plataformas, essa informação dificilmente vira à tona ao longo do pleito.

É como se estivéssemos todos sob o impacto do complexo de Cassandra: avisos sobre os riscos da desinformação foram feitos, mas tomados como falsos e desacreditados. Enquanto isso, aquilo que é possivelmente ou mesmo sabidamente falso ganha as telas com ares de verdade. Resta saber se 2020 requentará 2018 também nas urnas.

O Brasil está preparado para enfrentar a desinformação nas eleições?

O Brasil está preparado para enfrentar a desinformação nas eleições?

Myanmar, Reino Unido, Índia, Austrália, Estados Unidos, Indonésia, México. A lista, longe de exaustiva, mostra a diversidade de países que têm vivenciado problemas associados à desinformação nas eleições e que, por isso, tornaram-se objetos de políticas específicas por parte do Facebook, corporação dona também do WhastApp e do Instagram.

Em setembro, esse tipo de interferência foi mais uma vez confirmado por uma ex-cientista de dados do Facebook, Sophie Zhang, que produziu memorando em que afirmou que perfis falsos estão prejudicado eleições. No documento, que acabou vazando, Zhang colocou em questão a capacidade do Facebook de lidar com a desinformação, especialmente em países que não falam inglês, tanto pela priorização quanto pelo uso de sistemas automatizados que possuem dificuldades para compreender esses contextos.

No Brasil, a desinformação tem sido apontada como problema grave pelas autoridades. Ao assumir a presidência do TSE em maio, o ministro Luís Roberto Barroso revelou destacada preocupação com “milícias digitais” e mencionou necessidade de colaboração das plataformas no combate a elas, bem como de apoio ao jornalismo profissional.

Na mesma toada, quando ocupou aquele cargo em 2018, o agora presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux destacou o combate às chamadas fake news. Na cerimônia de posse na presidência do Supremo, ouviu do ex-presidente da Corte, Dias Toffoli, que a abertura do controverso inquérito das fake news foi “a decisão mais difícil” de sua gestão.

Impasse no TSE quanto à desinformação na campanha de Bolsonaro

Ocorre que há um abismo entre o reconhecimento e a adoção de medidas efetivas. Prova disso é a perpetuação, desde 2018, de processos que se referem à campanha da chapa de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão. Tramitam no TSE ações que pedem sua cassação por possíveis ilegalidades na realização de disparos em massa pelo WhatsApp e também por uso fraudulento de nome e CPF de idosos para registrar chips de celular.

Apesar de ter gerado discussões sobre a validade do resultado e fomentado a instalação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, a chamada CPMI das fake news, a Justiça não tem sido célere. Há um ano o WhatsApp chegou a reconhecer envios maciços de mensagens, mas as ações ainda estão em processo de coleta de provas. Também se espera a decisão do ministro Alexandre de Moraes sobre o compartilhamento de provas colhidas no inquérito.

Os argumentos jurídicos são fartos: abuso de poder econômico, uso indevido dos meios de comunicação digital, uso de robôs em campanha eleitoral, falsidade ideológica para propaganda eleitoral e compra irregular de cadastros de usuários. Não há, contudo, previsão de julgamento.

Os processos preocupam Bolsonaro.

Em sua “live” no dia 24 de setembro, ao lado do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e após as críticas às mentiras em seu discurso na ONU, Bolsonaro mostrou uma montagem que circulou na internet com a sua imagem e argumentou ironicamente para seu público que, enquanto esse tipo de conteúdo é liberdade de expressão, “se fosse o contrário seria fake news, passível de cassar o mandato, de prisão etc.”. O presidente acrescentou que “tem processo no TSE para cassar a minha chapa como se eu tivesse sido eleito por fake news”.

Sem julgamento apropriado, pouca coisa pode mudar

O julgamento das ações teria sido fundamental tanto para se ter respostas sobre o que efetivamente ocorreu nas eleições de 2018 quanto para que houvessem mais mecanismos de proteção da sociedade do mau uso da internet. É fundamental consolidar o entendimento jurídico sobre temas que serão enfrentados pelos tribunais regionais eleitorais nestas eleições.

Medidas como a que permitiu, desde 2018, o impulsionamento de conteúdos de internet, possibilitam, mediante pagamento, a ampliação do alcance de postagens em redes e a priorização de conteúdos para facilitar sua disponibilização por meio de aplicações de busca na rede.

Tais mecanismos acabam ampliando a desigualdade entre quem pode e quem não pode pagar por eles. Além disso, é por meio do impulsionamento que é feita a segmentação de públicos, uma das táticas utilizadas em campanhas de desinformação e que compromete a transparência do debate público, pois muitos posts ficam visíveis apenas para o público-alvo, contribuindo na criação de bolhas, reforço de visões de mundo e pouca (ou nenhuma) exposição ao contraditório.

Porém, ao invés da revisão dessas regras, vemos a ampliação e profissionalização de empresas de marketing e de plataformas para ofertar “soluções” baseadas em dados, segmentação, recomendação de conteúdos. O que aprofunda distâncias e mina o debate público.

Marketing digital e responsabilização de candidatos

No Portal Eleições 2020 do Google, são apresentadas como “boas práticas de campanha”: anúncio na pesquisa do Google, sendo possível escolher as palavras-chaves relacionadas à campanha para facilitar a oferta para pessoas que busquem temas semelhantes no site. O Google concentra mais de 90% das buscas no mundo. Sugerem ainda a inclusão de propaganda no YouTube, segmentando por público-alvo, palavras-chave, tópicos, canais, perfil demográfico e conteúdo. E ainda o uso de “display”, um tipo de anúncio que é exibido durante a navegação em outros sites.

A utilização de dados para obtenção de informações e produção e envio de conteúdos segmentados virou o carro-chefe dos negócios. No site do Google, é informado que “Dados Trends [tendências de dados] podem oferecer uma lente poderosa naquilo que os usuários estão curiosos a respeito e em como as pessoas ao redor do mundo reagem a acontecimentos importantes”.

Enquanto seguem pendentes de julgamento questões de caráter mais estruturante dos modelos de negócios das plataformas e das campanhas de desinformação, a legislação incorporou dispositivos que penalizam os usuários, como o que prevê pena de dois a oito anos de reclusão para quem, comprovadamente ciente da inocência de um candidato, divulgar uma notícia falsa sobre o mesmo durante as eleições. Também os partidos foram comprometidos.

Nesse sentido, a Resolução do TSE nº 23.610/2019 estendeu ao candidato a responsabilidade por todo o conteúdo que seja veiculado a seu favor, inclusive por terceiros. Presume-se que ele, seu partido ou sua coligação tenham tomado conhecimento do teor e concordado com a divulgação. Isso pode responsabilizá-lo também por disseminação de conteúdo falso, descontextualizado ou calunioso. Para esse diálogo com partidos, o TSE mantém, desde agosto de 2019, o Programa de Enfrentamento à Desinformação com Foco nas Eleições 2020, que também envolve associações de imprensa e outros grupos. O TSE também lançou a campanha “#Euvotosemfake”.

Quanto às plataformas, nas últimas semanas o TSE comemorou parceria com o WhatsApp, que anunciou que criaria chatbot para denúncias e figurinhas sobre voto consciente. Para conversar com o assistente e ficar bem informado sobre cuidados sanitários, dicas ao eleitor, regras do processo, notícias checadas e dados da Justiça Eleitoral, o usuário tem que adicionar o número 06196371078 e entrar em contato, o que também pode ser feito pelo link wa.me/556196371078. Não foi feita notificação direta para os usuários até agora, portanto eles também terão que tomar conhecimento do mecanismo. Segundo o TSE, a cooperação com o WhatsApp prevê também a criação de um formulário para denunciar contas suspeitas de realizar disparos em massa, conduta proibida pela lei eleitoral e também pelos Termos de Serviço do aplicativo.

Para ampliar o acesso, o TSE oficializou no último dia 29 um acordo com a Conexis Brasil Digital, que representa operadoras de telecomunicações, para garantir que usuários possam acessar conteúdos do site da Justiça Eleitoral sem gastar seu pacote de dados entre setembro e novembro. Essas medidas são importantes, mas absolutamente incapazes de enfrentar a máquina de produção de desinformação.

Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais

A novidade que pode ter maior impacto, do ponto de vista legislativo, é que em setembro deste ano passou a vigorar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). A lei já era referida na resolução do TSE sobre propaganda, que menciona que esta pode ser feita por meio de mensagem eletrônica para endereços cadastrados gratuitamente pelo candidato, pelo partido político ou pela coligação, observadas as disposições da LGPD quanto ao consentimento do titular. Mas sua vigência inaugura novo período de afirmação da proteção de dados como direito. Seguindo a regra, práticas bastante comuns como a reunião de contatos e o disparo de propaganda ficam vedadas.

Restam dúvidas, porém, quanto à capacidade das instituições internalizarem rapidamente os dispositivos da lei e desenvolverem uma postura proativa na fiscalização da propaganda na internet. Na pré-campanha, casos de uso de dados, impulsionamento por perfis de apoiadores e desinformação já vieram à tona.

Estarão as autoridades preparadas para, nos milhares de municípios brasileiros, enfrentar de forma efetiva a desinformação? Pelo visto nos últimos dois anos, a resposta não tende a ser animadora, até porque falamos de uma eleição mais capilarizada e de tribunais mais diversos e dispersos.

Crivella requenta “kit gay” e mostra o papel de políticos na desinformação

Muita gente pensa que a desinformação ocorre apenas no “submundo” da internet. Mas não é bem assim. No primeiro debate entre candidatos à prefeitura do Rio de Janeiro, promovido pela Band na quinta-feira, 1, ficou explícito o recurso a esse tipo de estratagema, mesmo diante das câmeras e do possível escrutínio público.

Prefeito e candidato à reeleição, Marcelo Crivella (Republicanos) requentou informação falsa sobre “kit gay” ao afirmar que: “Se o PSOL ganhar a eleição, nossas crianças vão ter uma coisa que tinha em casa, orientação sexual. Vai ter kit gay na escola e e vão induzir a liberação das drogas”.

Certamente seguindo o script combinado previamente, a fala surgiu em confronto com a candidata do PSOL, Renata Souza. Antes da discussão entre os dois, Clarissa Garotinho (PROS) havia questionado Crivella sobre a gestão das contas da prefeitura.

Crivella, na sequência, teve a oportunidade de começar e perguntou a Renata sobre sua opinião acerca da “ideologia de gênero” e prevenção às drogas. Renata optou por enfatizar, na resposta, críticas à condução do prefeito no controle da pandemia. Na tréplica, ele tirou do bolso a velha “fake news”, em uma tentativa de colocar o debate no campo em que sua torcida gosta de vê-lo jogando.

Eleitores de Bolsonaro acreditaram na existência do “kit gay”

Direto do armário de 2018, o “kit gay” voltou à tona, mostrando que as táticas não foram renovadas. O “kit” foi o segundo boato que mais ganhou lastro no Facebook e no Twitter naquele pleito, segundo levantamento da Aos Fatos, que registrou mais de 400 mil compartilhamentos com esse teor.

Confirmando o impacto, pesquisa IDEIA Big Data/Avaaz mostrou que 84% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram na existência do “kit gay”. Sua criação foi atribuída a Fernando Haddad (PT) por Bolsonaro, inclusive durante entrevista como candidato no Jornal Nacional. Na importante bancada, com um exemplar à mão, o hoje presidente afirmou que o livro Aparelho Sexual e Cia tinha sido distribuído em escolas públicas pelo Ministério da Educação sob o comando de Haddad.

O suposto “kit gay”, além de bastante conhecido e desmentido, chegou a ser objeto de liminar do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que requereu a remoção de 36 conteúdos relacionados a ele por Bolsonaro e seus apoiadores. O relator do caso, ministro Carlos Horbach, destaca em sua decisão que “a difusão da informação equivocada de que o livro em questão teria sido distribuído pelo MEC, no referido projeto, no PNLD ou no PNBE, gera desinformação no período eleitoral, com prejuízo ao debate político, o que recomenda a remoção dos conteúdos com tal teor”.

Uma semana depois dessa medida, Bolsonaro voltou a veicular conteúdos sobre o mesmo tema, em inserções na rádio e na TV, ignorando o entendimento da Justiça.

Quais medidas cabem às falas de Crivella?

Na atual eleição, consta na legislação que é considerado crime previsto no Código Eleitoral (Lei 4.737, de 1965) divulgar denúncias caluniosas contra candidatos em eleições, conforme alteração legislativa aprovada pelo Congresso em 2019. A candidata Renata Souza já informou que vai acionar a justiça para que o candidato seja responsabilizado.

Mas o debate sobre o tema não é apenas da esfera jurídica. É do próprio fazer político que se trata. Do uso de desinformação de forma escancarada, banalizada, sem que a sociedade reaja criticamente à altura. Um uso que se faz de forma intencional e estratégica, como apontamos em artigo anterior neste Observatório das Eleições. Que ocorre sem que tenhamos sequer nitidez sobre a extensão do impacto de conteúdos desinformativos ou possibilidade de alcançar os mesmos receptores para que conheçam outras versões dos fatos.

Políticos e disseminação de fake news

O caso, infelizmente, não é isolado. Lançado nesta semana, estudo da Universidade de Cornell indica forte papel de Donald Trump na disseminação de notícias falsas sobre o coronavírus. Pesquisadores mapearam 38 milhões de reportagens publicadas entre 1º de janeiro e 26 de maio e constaram que, em mais de 522 mil artigos, houve desinformação. Em quase 38% destes casos, a discussão partiu de Trump, por isso considerado no estudo o maior impulsionador da “infodemia”.

Nos conteúdos, foram promovidas “curas milagrosas” não comprovadas para a Covid-19 ou esta foi apresentada como “farsa do Partido Democrata” com o objetivo de atacar o atual presidente, que testou positivo para o coronavírus.

O interessante do estudo é que ele comprova que a desinformação não está apenas associada às mídias digitais, tendo espaço na mídia tradicional e também na online, o que o caso Crivella também deixa ver. Além disso, destaca o papel central de agentes políticos em sua promoção.

Bastante recorrente, esse tipo de vinculação é percebida pela população. De acordo com o Digital News Report 2020, estudo feito a partir da parceria entre Reuters Institute e Universidade de Oxford, os políticos domésticos são vistos como os principais responsáveis por informações falsas e enganosas online (40%). Depois estão ativistas (14%), jornalistas (13%), pessoas comuns (13%), e governos estrangeiros (10%). Estados Unidos, Brasil, Filipinas e África do Sul são os países com mais registros de culpabilização de políticos.

O levantamento, que ouviu mais de 80 mil pessoas em 40 países, a partir questionário online aplicado entre o fim janeiro e o início de fevereiro, também mostra que mais da metade (56%) dos entrevistados, repetindo o que havia sido diagnosticado em 2019, permanece preocupado com o que é real e falso na internet quando recebe uma notícia. A preocupação tende a ser maior em países do Sul global. O Brasil lidera a lista (84%), seguido de Quênia (76%), e África do Sul (72%).

Essa situação deve lançar luz sobre o problema e direcionar nossas buscas por respostas para os agentes que promovem desinformação intencionalmente e que se valem de sua projeção como figuras públicas e mesmo autoridades para influenciar a população e subverter o debate democrático.