O que as plataformas têm feito para combater a desinformação nas eleições?

O que as plataformas têm feito para combater a desinformação nas eleições?

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) divulgou que, entre 27 de setembro e 26 de outubro, recebeu 1.037 denúncias de contas de Whatsapp suspeitas de disparos de mensagens em massa, resultando no banimento de 256 contas pela plataforma. A empresa informou que 80% das contas denunciadas já haviam sido derrubados por seu sistema contra spam antes mesmo de serem reportadas ao TSE. Não há mais detalhes sobre os motivos para as exclusões, justificadas, em geral, por violarem os Termos de Serviço da plataforma. O número é pequeno se considerarmos, entretanto, que, de acordo com dados oficiais do WhatsApp, cerca de 2 milhões de contas são banidas globalmente todos os meses por esse mecanismo.

Talvez o baixo índice de denúncias seja fruto do fato de que muita gente não sabe que esse comportamento é considerado ilegal no processo eleitoral e nem conhece os caminhos para denunciá-lo. O WhatsApp não tem, por exemplo, uma política específica para lidar com casos de disseminação de desinformação, tampouco adota mecanismos de contato direto com os usuários, a exemplo de notificações, para avisá-los sobre a vedação da prática ou sobre o canal de denúncias do TSE. Até hoje, o Whatsapp lançou no Brasil apenas uma campanha sobre o tema, intitulada “Compartilhe fatos, não rumores”, que aponta ter alcançado 8 milhões de brasileiros, número bem menor que as 130 milhões de contas ativas no país. Em outros países, como na Índia, mais medidas têm sido adotadas, inclusive ações presenciais de esclarecimento da população sobre o fenômeno.

Em abril deste ano, a plataforma passou a limitar no Brasil o encaminhamentos de mensagens, o que pode diminuir a velocidade na propagação da desinformação, e firmou parcerias com agências de checagem. Mas para conter de fato as chamadas fake news seria preciso limitar a atuação de grupos que agem de forma coordenada (que podem criar infinitos grupos e listas de transmissão, por exemplo) e contam com sistemas que burlam eventuais empecilhos da rede – além de desenvolver um esforço conjunto com autoridades competentes para ampliar a investigação e responsabilização de agentes que produzem desinformação na plataforma.

Ou seja, o Whatsapp está fazendo pouco, e o quadro não é muito diferente nas demais plataformas. É o que revela a pesquisa Fake news: como as plataformas enfrentam a desinformação, lançada recentemente pelo Intervozes.

O estudo mapeou as ações das principais redes sociais em operação no Brasil – Facebook, Instagram, WhatsApp, YouTube e Twitter – a partir de 2018, quando a desinformação já era considerada um problema em âmbito mundial, e concluiu que as medidas tomadas pelas empresas têm sido insuficientes para enfrentar concretamente o fenômeno. Todas tangenciam a questão, evitando inclusive conceituar a desinformação e dispor de equipes específicas para dar conta do desafio de interromper o fluxo desinformativo, que ameaça democracias em todo o mundo. Também faltam divulgação de informações sobre medidas em curso, transparência sobre sua implementação e avaliação dos resultados.

Em relação à prática de desinformação durante as eleições, tema deste Observatório, a pesquisa do Intervozes mostra que boa parte das medidas não é adotada em todos os países onde as plataformas funcionam. Muitas vezes, as plataformas privilegiaram os processos eleitorais nos Estados Unidos e na União Europeia, deixando mais desguarnecidas as eleições em países como o Brasil.

Apontada como principal lócus do problema hoje, o WhatsApp é a plataforma que conta com menor número de medidas contra desinformação.

Facebook e Instagram

Um exemplo é a mudança feita pelo Facebook e Instagram no design dos rótulos de conteúdos verificados para tornar mais nítidas classificações de “falso” ou “parcialmente falso”. Já implementada para as eleições gerais do Reino Unido e nos Estados Unidos, a medida adiciona um filtro cinza que diferencia a imagem questionada das demais e passou a ser utilizada no Brasil.

Também nos Estados Unidos, para as eleições presidenciais de 2020, as contas de candidatos ganharam proteções extras contra invasões, como autenticação em dois fatores e um monitoramento para evitar acessos indevidos de locais estranhos. Um rastreador dos gastos dos candidatos a presidente também foi criado. Em junho, foi implementada uma opção de não receber anúncios políticos aos estadunidenses. No último dia 30 de outubro, o Instagram removeu a guia “recentes” de páginas de hashtags, explicando que faz isso “para reduzir a propagação em tempo real de conteúdo potencialmente prejudicial que poderia aparecer em torno da eleição”, divulgou.

O Facebook também anunciou US$ 2 milhões em investimentos para organizações que trabalham com ações de formação nos Estados Unidos, visando a promoção de uma relação mais crítica com os conteúdos que circulam na plataforma.

Já para o pleito do Parlamento Europeu de maio de 2019, entre outras ações, o Facebook estabeleceu a identificação do indivíduo e de seu local de residência para administradores de páginas com muitos seguidores. Também foi instalado um centro de operações em Dublin, na Irlanda, a partir do qual houve coordenação em tempo real com as equipes da sede da empresa, nos EUA. Não há registro de esforços com o mesmo empenho e gastos financeiros no Brasil.

Mas lá como aqui a plataforma passou a remover mensagens que possam enganar os usuários sobre datas, formas e locais de votação, sobre exigências para a participação no pleito e que possam ameaçar eleitores de modo violento. O problema desse tipo de medida é a ausência de transparência e devido processo sobre a moderação do conteúdo. Da forma como é feita hoje, a decisão por remover postagens e banir contas cabe exclusivamente ao Facebook, ainda que parte dos conteúdos seja avaliada por verificadores parceiros. Assim, a plataforma se coloca como árbitro da verdade do que circula nas redes, o que traz riscos à liberdade de expressão. Até agora, por exemplo, não foram divulgadas informações sobre remoções de contas e conteúdos nem sobre outras medidas relacionadas às eleições em curso no Brasil.

Outra problemática abordada no estudo do Intervozes é que discursos originais e anúncios de políticos não passam por processos de checagem, pois são tratados como exceção e como válidos. Para não classificá-los, a empresa argumenta possíveis impactos na liberdade de expressão e no debate público. É preciso, contudo, encontrar um equilíbrio para que essa exceção não se torne uma naturalização do discurso desinformativo, sobretudo considerando o que vemos frequentemente em posts de líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Um caminho poderia ser incluir alertas sobre as verificações e inserir limitações de compartilhamento ou de interação.

Para não ficar só nos problemas, vale destacar que Facebook e Instagram rotulam anúncios, que só são autorizados após um cadastro com identificação de responsáveis e passam a figurar na Biblioteca de Anúncios da plataforma, dando transparência ao que é impulsionado. Aqueles sobre temas sociais de políticos não identificados são passíveis de não aprovação, caso contenham desinformação.

YouTube

Nas eleições de 2018 nos Estados Unidos e para o Parlamento Europeu em 2019, quando usuários pesquisavam por um candidato/a na plataforma, o YouTube oferecia junto aos resultados um painel com informações adicionais sobre a pessoa, como afiliação partidária e distrito pelo qual concorria. Para o pleito deste ano nos Estados Unidos, o Google, corporação dona do canal de vídeos, está modificando as regras de propaganda política, para dar maior visibilidade a quem comprar anúncios eleitorais na plataforma.

Em entrevista à pesquisa, o Google informou que trata-se de um esforço geral sobre transparência de anúncios e que a implementação dessas medidas no Brasil vai depender dos desafios que estão enfrentando em outros países e dos requisitos colocados no processo. A ausência disso preocupa, já que basta acessar a plataforma para verificar que são muitos os anúncios políticos que constam nela.

Por aqui, também não houve mudanças no sistema de recomendações da plataforma, que tem sido apontado como amplificador da visibilidade de canais extremistas. No Brasil, por exemplo, os canais que mais cresceram nas eleições de 2018 foram os de extrema direita.

O YouTube declara adotar ações para permitir que a plataforma seja considerada uma fonte confiável de informações e notícias sobre as eleições, ao mesmo tempo que um espaço aberto para um discurso político “saudável”. Neste contexto, remove vídeos que violem as diretrizes gerais da plataforma para conteúdos relacionados às eleições, com destaque para os vídeos objeto de manipulação técnica (como edições que tirem uma informação de contexto), além de conteúdos que possam enganar os eleitores sobre processos de votação ou elegibilidade de candidatos.

Twitter

Em março de 2020, a plataforma disse que sua prioridade é garantir a integridade do debate público sobre eleições em todo mundo, usando para isso pessoas e tecnologias de machine learning para combater a desinformação. Em entrevista à pesquisa do Intervozes, informou que, como parte dos preparativos específicos à eleição brasileira, aperfeiçoaram a tecnologia anti-spam, para abordar redes de automação mal-intencionadas voltadas sobre eleições; criaram linhas de comunicação com as autoridades para avaliar os problemas que surgirem; monitoramento de tendências e picos nas conversas relacionadas às eleições de 2020 para possíveis atividades de manipulação; e verificaram os principais candidatos e as principais contas de partidos como uma proteção contra a falsa identidade.

Para efeito de comparação, nas eleições dos Estados Unidos em 2018 e da União Europeia em 2019, o Twitter identificou todos os candidatos e criou um selo para suas contas, que acompanhava os tweets e retweets publicados por elas, para informar os usuários da rede. Nos Estados Unidos, também foi colocada no ar uma ferramenta para permitir denúncias de informações enganosas sobre como participar do pleito.

A medida recente mais importante tomada pelo Twitter foi a proibição da veiculação de propaganda política na rede social durante os períodos de campanha eleitoral. Tal propaganda, autorizada até o final de 2019 em alguns países, incluía não apenas conteúdos diretamente postados pelas candidaturas, mas também identificava “anúncios temáticos” que identificassem um candidato ou defendessem mudanças legislativas de importância nacional – como aborto, direitos civis, mudanças climáticas, armas, imigração, impostos, comércio e seguridade social. Os conteúdos ficavam disponíveis num Centro de Transparência de Anúncios.

Parte da política do Twitter para integridade nas eleições , em vigor no Brasil, restringe a publicação ou o compartilhamento de conteúdo que possa diminuir o comparecimento dos eleitores às urnas (incluindo intimidações), enganar as pessoas sobre quando, onde e como votar ou informar falsas filiações partidárias. Entretanto, segundo a empresa, não são consideradas violações a essa política conteúdos cujo uso excessivo foi constatado nas últimas eleições no Brasil, como “declarações incorretas sobre um representante público eleito, candidato ou partido político; e conteúdo orgânico polarizado, tendencioso, hiper-preconceituoso ou que contenha pontos de vista controversos sobre as eleições ou os políticos”, como estea no relatório da pesquisa do Intervozes citada anteriormente.

Em outubro, a rede social anunciou que, faltando uma semana para as eleições dos Estados Unidos, passará a emitir alertas para os usuários sobre desinformação. Não há previsão para o mesmo ocorrer no pleito brasileiro, assim como ainda não foram divulgados resultados das iniciativas em curso no país.

Até agora, olhando para o conjunto das plataformas, parece que o volume da desinformação em circulação nas redes é menor. Mas, se a impressão for real, não se pode afirmar que ela é resultado das medidas adotadas pelas redes sociais para o processo eleitoral. Pode ser fruto, por exemplo, das dificuldades de articulação política, tendo em vista a fragmentação do campo da direita, ou até mesmo do fato das eleições serem municipais, mais pautadas, portanto, por temas locais. A baixa divulgação de informações pelas plataformas e as possibilidades de comunicações segmentadas em bolhas deixam, mais uma vez, a sociedade sem clareza do que está ocorrendo nas redes. Talvez só os resultados das urnas tragam respostas, para o risco da nossa democracia.

* Helena Martins, Bia Barbosa e Jonas Valente são jornalistas, autores da pesquisa e integrantes do Intervozes.

Dois anos após a eleição de Bolsonaro, a desinformação tem o mesmo impacto?

Dois anos após a eleição de Bolsonaro, a desinformação tem o mesmo impacto?

Há exatos dois anos, o então deputado Jair Bolsonaro, considerado um político inoperante e do baixo clero, era eleito presidente do Brasil. Nenhum fator isolado é capaz de explicar sua eleição, mas no pacote de motivos há consenso em torno do papel da estratégia de comunicação desinformativa que utilizou e que, ainda antes do segundo turno, foi denunciada pela imprensa e por pesquisadores. Longe de pontual, aquela eleição mostrou a própria reconfiguração da política diante do crescimento da mediação pelas tecnologias e da importância das redes sociais.

O sinal vermelho foi aceso e, desde então, preocupações em relação aos possíveis impactos da desinformação em outros pleitos motivaram iniciativas por parte de agentes públicos. Um exemplo veio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que recentemente anunciou parceria com as plataformas digitais e criação de canal sobre fatos e mentiras.

Agentes privados também apresentaram iniciativas, como o Facebook, que, além de criar uma biblioteca de anúncios dando transparência às propagandas digitais, passou a remover conteúdos desinformativos que causem violência, dano ou que comprometam processos eleitorais. A rede também proíbe a veiculação de anúncios com mensagens falsas.

O sucesso na internet reverte-se em sucesso nas intenções de voto?

A pouco mais de 15 dias do primeiro turno das eleições municipais, há dúvidas sobre o papel que as redes sociais e as estratégias de desinfomação têm exercido. Em que pese forte investimento dos candidatos em impulsionamento de conteúdos, pesquisas de intenção de votos não têm demonstrado uma correlação direta entre número de seguidores e o apoio efetivo a candidaturas.

No campo bolsonarista, embora ruidosos na internet, poucos são os candidatos nas capitais que vão bem nas sondagens. Estudo do Manchetômetro a partir de 319 páginas de prefeituráveis analisou aqueles com mensagens mais compartilhadas em diversas capitais e verificou essa diferença entre o barulho que fazem nas redes e intenções de votos.

Marcelo Crivella (Republicanos) candidato à reeleição no Rio de Janeiro, teve 8 dos 10 posts mais compartilhados, mas tem 13% de intenções de votos segundo o Datafolha, ficando em segundo lugar e tecnicamente empatado com terceiro e quarto.

Em Belo Horizonte, Bruno Engler (PRTB) faz sucesso com postagens que o associam ao presidente e usam hashtags como #Bolsonaro, #GoBolsonaro e #Bolsonaro2022, mas pontua apenas 3%.

Em São Paulo, Joice Hasselmann (PSL), que tem o maior número de seguidores e ganhou boa visibilidade com ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) na última semana, amarga 3% de intenções de votos, segundo a última pesquisa daquele instituto. Também em São Paulo, o candidato Arthur do Val (Patriota), conhecido pelo canal do YouTube Mamãe Falei, tem quase 3 milhões de seguidores, mas registra apenas 4%.

Registrar 3% ou 4% não é pouco para candidatos que se lançaram há pouco na política, mas não reflete o alcance que possuem. O que explica esse descompasso? As redes teriam perdido importância?

Difícil sustentar tal argumento, ainda mais em tempos de pandemia, que levou as pessoas a ficarem mais tempo na internet. Mas é possível afirmar que as redes sozinhas não ganham uma eleição. Mesmo no caso de Bolsonaro, não me parece ser o caso de apontar apenas esse fator e desconsiderar outros, como a insatisfação com a política, o afastamento de seu principal adversário, Lula, a partir de movimentações do Judiciário e o desgaste construído pela mídia em relação ao PT. No caso de uma eleição municipal, pesam ainda outros fatores que estão mais próximos e podem influenciar de maneira mais decisiva na hora do voto, como as políticas das prefeituras em relação à pandemia, como já abordado neste Observatório das Eleições.

WhatsApp como principal ferramenta para desinformação

Quanto à desinformação, teriam os adeptos do bolsonarismo deixado de utilizar as estratégias que se mostraram vitoriosas na ascensão do hoje presidente? Ou elas passaram a ter menos impacto? São perguntas fundamentais na tentativa de se compreender a dinâmica de uma política cada vez mais midiatizada, mas que só serão respondidas com as urnas fechadas e os resultados conhecidos. Antes disso, algumas hipóteses podem ser lançadas.

A primeira é que não, a desinformação não está fora do jogo político. Fake news requentadas e mentiras ditas por candidatos até em frente às câmeras de TV têm sido verificadas. Mas seu impacto pode ter sido mitigado, tanto por iniciativas das plataformas quanto pela dinâmica própria das eleições municipais.

No caso do Facebook, a criação de um espaço a partir do qual é possível verificar os conteúdos veiculados pelos candidatos, assim como as proibições antes mencionadas, podem ter dificultado o uso da estratégia de desinformar. Isso, aliás, ocorreu já em 2018 no Brasil. Antes daquela eleição, muitos dos debates e propostas que objetivavam proteger o pleito foram direcionadas à tal plataforma.

O que se viu ao longo do ano foi o direcionamento de conteúdos desinformativos por meio do WhatsApp, onde candidaturas também adotaram a tática de disparos em massa, valendo-se das possibilidades de criação de grupos e da alimentação de diversos deles por alguns usuários. Importante notar que, para tanto, foi constituída uma lógica de distribuição que começa centralizada, com difusão de mensagens por parte de alguns agentes espalhados em diversos grupos, e depois ganha capilaridade com o engajamento orgânico dos participante – inclusive em grupos menores que não são claramente identificados com determinadas candidaturas, como de bairros ou serviços, o que ajuda a “furar a bolha”.

A segunda hipótese é que a plataforma do WhatsApp é mais vulnerável a isso, inclusive por suas escolhas, como não uma ter política específica para combater a desinformação nas eleições. Como nas eleições passadas, segue sendo possível criar infinitos grupos e listas de transmissão. Também não houve desbaratamento das fábricas de desinformação e disparo em massa, “serviços”, aliás, que continuam sendo ofertados, como mostrou a Folha de S. Paulo.

Por outro lado, desde 2018 o mensageiro tem reduzido a circulação de conteúdos altamente compartilhados, limitando o número de encaminhamentos de mensagens permitido. Também tem utilizado ferramentas de tratamento de spam e aprendizagem avançada de máquinas para retirar mensagens automatizadas em massa e banir contas de usuários com comportamentos inadequados, a exemplo do envio de mensagens em massa e da criação de múltiplas contas. Medidas que podem dificultar o disparo em massa ou reduzir a velocidade na propagação da desinformação, ainda que não impeçam que ocorra, pois muitos dos agentes que se valem desse mecanismo utilizam sistemas que conseguem driblar esses empecilhos.

Toda essa situação e o fato de ser pouco transparente e dificilmente auditável permitem sustentar que o WhatsApp pode ser o canal preferido para quem busca desinformar. Observando o radar da agência de checagem Aos Fatos, que monitora conteúdos “de baixa qualidade” em diversas plataformas, indícios de confirmação dessa hipótese são vistos. Em uma semana de monitoramento de 272 grupos, foram coletadas 6.517 publicações sobre eleições municipais, das quais 1.143 mensagens foram rotuladas como de baixa qualidade.

A mensagem mais compartilhada diz, em caixa alta,: “VAMOS VARRER DAS PREFEITURAS E CÂMARAS MUNICIPAIS DE VEREADORES DE TODO BRASIL OS COMUNISTAS DESGRAÇADOS SAO TODOS CONTRA A FAMÍLIA, CONTRA A PROPRIEDADE PRIVADA CONTRA AOS CRISTÃO. SE VOCÊ AMA SUA FAMÍLIA E A NOSSA PÁTRIA ENTÃO VOCÊ NÃO VOTA NOS SEGUINTES PARTIDOS ABAIXO” – e segue listando 26 partidos.

A segunda em número de compartilhamentos mistura supostas fraudes na eleição e “o desmonte da farsa da peste chinesa”. A terceira refere-se criticamente à discussão sobre educação e ensino de gênero. A quarta faz alusão à fraude nas urnas eletrônicas, desinformação que tem sido bastante recorrente, como já mostramos aqui. A maior parte das demais mensagens com expressivo número de compartilhamentos também faz a defesa de Bolsonaro e refere-se às eleições municipais.

Os grupos analisados são públicos, com links de acesso disponibilizados na rede por seus administradores de diversos estados. Em grupos mais fechados, saber o que acontece é mais difícil, mas denúncias de desinformação têm sido verificadas. Em Fortaleza, por exemplo, o grupo “Mercadinho do Bairro” foi utilizado para disparar mensagens contra a candidata do PT, Luizianne Lins. Na análise da Aos Fatos, quando comparada a pontuação conferida às mensagens monitoradas no WhatsApp, YouTube, Web e Twitter, o WhatsApp registra a menor nota, o que indica mais conteúdos de “baixa qualidade circulando”.

Situação semelhante é verificada pelo Coar, projeto piauiense de fact-checking que recebe e analisa mensagens, além de coletá-las em dezenas de grupos de WhatsApp. Nas primeiras semanas destas eleições, de acordo com a fundadora da iniciativa, Marta Alencar, foram recebidos poucos conteúdos sobre o pleito. Ainda que o volume tenha começado a aumentar, seguem predominando menções ao cenário nacional e a temas como a vacina contra o coronavírus.

Em geral, a circulação sobre eleições tem se dado sobretudo por meio de grupos fechados no WhatsApp e no Telegram, além de em canais do YouTube. Circulam vídeos e textos, por exemplo, sobre suposta proposta do candidato Kleber Montezuma (PSDB) de implantar o “kit gay” nas unidades de ensino em Teresina. A Coar não encontrou nenhuma declaração feita por Montezuma sobre programa do tipo. Mensagens que manipulam resultados de pesquisas de intenção de voto também têm sido denunciadas e checadas.

Perspectivas para a reta final da campanha

A redução na circulação da desinformação sobre as eleições municipais leva a crer que o impacto que vimos em 2018 não será o mesmo em 2020. Em uma eleição nacional, é mais fácil unificar discursos e organizar a distribuição de mensagens em variados grupos sobre temas como o famoso “kit gay”.

Em embates municipais, as dinâmicas e mesmo candidatos diversos dificultam essa operação. A fragmentação do campo da direita pode também incidir nesse cenário e levar à redução das campanhas de desinformação. O fracasso político de Bolsonaro em sua tentativa de organizar um partido para ele e sua família também pesa. Caso a Aliança tivesse sido consolidada, possivelmente a transmissão da tecnologia de organização de campanhas nas plataformas digitais teria sido facilitada.

Ainda que essas questões estejam postas, é prudente observar especialmente grupos que aparentam ser privados e segmentados e acompanhar a reta final da campanha, especialmente em cidades com cenário indefinido e que podem ser palcos do “vale tudo” eleitoral.

Com disputa acirrada, candidatos apelam para desinformação em Fortaleza

Com disputa acirrada, candidatos apelam para desinformação em Fortaleza

A disputa está acirrada entre os candidatos à Prefeitura de Fortaleza Capitão Wagner (PROS), Luizianne Lins (PT) e Sarto (PDT). Na última semana, as campanhas de Wagner e Freire (PSL), que vinham tendo como centro a apresentação dos candidatos, partiram para o ataque, lançando mão de informações descontextualizadas, incompletas ou mesmo desinformativas.

A maior controvérsia gira em torno do primeiro colocado, Capitão Wagner, por uma discussão travada nas redes e nas emissoras de rádio e TV com o próprio governador Camilo Santana (PT). Em entrevista ao programa de TV Ponto Poder na terça-feira (13), Capitão Wagner negou ter apoiado o movimento de policiais militares que culminou na paralisação ocorrida em fevereiro deste ano no Ceará.

“A gente foi contra a realização desse movimento. Em nenhum momento eu me posicionei a favor de qualquer paralisação em Fortaleza ou no Estado do Ceará. Eu tenho muita responsabilidade nessa questão”, afirmou.

O governador utilizou as redes sociais para rebater: “Não é verdade. [Capitão Wagner] Tanto liderou o motim de 2011 como teve participação direta nesse último motim. […] Foi um dos atos mais covardes já praticados contra a população”, postou.

Mensagens publicadas no twitter de Camilo Santana, governador do Ceará, no dia 14 de outubro


Captura de tela feita em 22 de outubro, do perfil https://twitter.com/CamiloSantanaCE

O capitão inicialmente evitou retrucar, possivelmente pela dificuldade de sustentar a afirmação e necessidade de afastar a imagem negativa da greve da PM. Mas a questão ganhou as redes sociais, com ampla circulação de vídeos apócrifos críticos a ele em grupos de WhatsApp.

Logo após a divulgação da pesquisa DataFolha, no dia 17 de outubro, que confirmou a indefinição do cenário eleitoral na cidade, diferentes candidaturas reforçaram menções ao fato. Na TV, desde o dia 21, postagens de Camilo passaram a ser utilizadas por Sarto, em repetidas inserções ao longo da programação das emissoras.

Wagner, então, apontou tratar-se de “fake news” e chegou a criar um site específico para “que vocês possam se informar sobre as mentiras que têm sido espalhadas sobre mim”, como anunciou em vídeo na rede social. Retrucando, Camilo publicou imagens de matérias, entre as quais uma que destaca projeto de Wagner como deputado federal para anistiar participantes da greve.

A estratégia do candidato apoiado por Jair Bolsonaro faz lembrar a de Donald Trump, que passou a utilizar a expressão “fake news” contra a cobertura crítica em relação a ele pela imprensa, tentando fazer crer que as críticas não são mais que intrigas da oposição. O problema é que esse tipo de discurso pode convencer parte do seu eleitorado, especialmente em um contexto de polarização como o vivido nos Estados Unidos e também no Brasil.

Mas um olhar atento evidencia as contradições. No site oficial, o candidato retirou a foto em que aparece com lideranças do movimento e substituiu por uma imagem apenas descritiva das suas pautas de segurança (ver imagens abaixo).

Na foto, Wagner, o deputado estadual Soldado Noélio e um dos líderes da paralisação. Imagem que estava no site do Capitão Wagner no início da campanha. https://capitaowagner.com/

Imagem com texto sobre segurança pública, inserida para substituir a imagem anterior. Site do Capitão Wagner. https://capitaowagner.com/

Ainda que tenha utilizado o programa no Horário Eleitoral Gratuito para negar participação na greve, usando vídeo da época em que diz que “Eu não vim aqui para inflamar a greve, vim aqui para solucionar o problema”, é difícil sustentar a afirmação, tendo em vista o histórico com o grupo e, inclusive, a participação em sua chapa de vereadores de pessoas vinculadas à paralisação.

Outra fala de Wagner amplamente repercutida e questionada refere-se à liberação de, segundo o candidato, R$ 43 milhões de emenda parlamentar para a saúde pública do Estado, no primeiro semestre de 2020, dos quais R$ 25 milhões teriam sido destinados ao enfrentamento à Covid-19. Pesquisando no site Siga Brasil, vê-se que a soma das emendas do deputado totalizam menos de R$ 16 milhões, com R$ 3 milhões dedicados às ações contra pandemia. Destes, R$ 9,3 milhões foram executados. Do empenhado, nem tudo foi para saúde. Há emendas dedicadas ao Comando da Marinha, administração do Ministério da Justiça e Segurança Pública e outras pastas. No site do capitão, ele apresenta documento assinado de próprio punho para comprovar os recursos. No entanto, a Justiça determinou a retirada da propaganda de Wagner sobre o suposto repasse à saúde.

Ataques ao PT

Também subindo o tom nas agressões, pelo menos desde o dia 18, o representante do PSL, Heitor Freire, que figura com 1% na pesquisa DataFolha, tem usado programas eleitorais para atacar adversários. O candidato que pretende “endireitar Fortaleza” dirige-se indiretamente à candidata petista, Luizianne Lins. Em uma das propagandas no rádio, menciona “candidata vermelhinha querendo voltar pra prefeitura” e “galega pulso frouxo”.

Nesta semana, Luizianne acionou à Justiça e, segundo divulgado em suas redes sociais, ganhou liminar determinando a exclusão de vídeo difamatório que circulava em grupos do Facebook e do Whatsapp. Na decisão também é solicitada a identificação do administrador e responsável pela postagem. O jornal O POVO detalhou que “a Justiça Eleitoral bloqueou dois números de telefone, um responsável por grupo de WhatsApp chamado ‘Grupo Mercadinho do Bairro’, o outro pela postagem de vídeo com ataques pessoais à candidata à Prefeitura de Fortaleza”.

Assim como em 2018, a reta final do pleito não só repete a redução da discussão política, mas também estratégias que pretendem confundir o eleitor, sejam aquelas adotadas abertamente na TV e rádio ou as que circulam mais ocultas nas redes sociais. É cedo para saber se a rede montada naquela campanha está sendo usada ou se terá o mesmo impacto em pleitos pulverizados como são as eleições municipais, com questões locais que dificultam a padronização das mensagens e a viralização nacional delas. Mas o exemplo da eleição fortalezense, na qual a polarização tem se reproduzido, é um indício preocupante.

Primeira semana de campanha é marcada por fake news requentadas sobre urnas

Primeira semana de campanha é marcada por fake news requentadas sobre urnas

Campeãs em número de circulação nas eleições de 2018, campanhas de desinformação sobre urnas eletrônicas são novamente vistas aos montes na internet. Observando os chats de WhatsApp e os portais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e das principais agências de checagem de fatos em operação no Brasil, fica claro que, ao longo da primeira semana de campanha, conteúdos já bastante conhecidos e rotulados como falsos mas que atingem a credibilidade do sistema eleitoral têm sido novamente utilizados.

O Tira-Dúvidas Eleitoral do TSE, assistente virtual da Justiça Eleitoral acessível por meio do WhatsApp, apresentou neste domingo (4) os seguintes destaques sobre a primeira semana de campanha: “É falso que a Lenovo comprou a Positivo, fabricante de urnas das eleições de 2022”; “Escolhida para produzir urnas eletrônicas, Positivo não foi comprada pela chinesa Lenovo” e “Lenovo nunca comprou a Positivo, ao contrário do que diz boato”.

Urnas eletrônicas no centro das fake news

Na página “Fato ou Boato”, iniciativa do TSE em parceria com diversos agentes para combater a desinformação, as urnas eletrônicas também tiveram destaque. Anulação de mais de 7 milhões de votos nas eleições, impossibilidade de auditoria das urnas e suposta entrega de códigos delas para Venezuela foram alguns dos conteúdos desmentidos.

Imagem da página Fato ou Boato (TSE) no dia 05 de outubro.

Tendo em vista a opacidade das plataformas digitais, que podem direcionar conteúdos exclusivamente para determinados usuários, e também a diversidade de sites, canais, contas e grupos, não é possível cravar o número de compartilhamentos ou saber se outros conteúdos falsos não viralizaram ainda mais.

Mas a análise de diferentes sites de verificação possibilita uma amostra importante do que vem ocorrendo, já que cada um desenvolve sua própria metodologia de coleta e análise de posts, chegando a distintas fontes. Destaco o que foi produzido sobre o que circulou sobre eleições nas redes, sem considerar, por isso, análises dos verificadores sobre falas de políticos em debates, situação já abordada neste Observatório das Eleições.

Na Agência Lupa, considerada a primeira agência de fact-checking do Brasil, as eleições aparecem em mensagens sobre urnas eletrônicas. “Circula nas redes sociais um post que diz que somente Brasil, Cuba e Venezuela usam urnas eletrônicas em eleições”, informa.

Segundo checagem da agência, de acordo com o Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (International IDEA), 26 países, como Índia e Peru, usam urnas com tecnologia eletrônica para eleições gerais, de um total de 178. Outros 16 utilizam esses equipamentos em pleitos regionais.

O Projeto Comprova, que reúne jornalistas de 28 diferentes veículos de comunicação brasileiros, deu o mesmo destaque: “Postagem no Facebook afirma que, além do Brasil, apenas Cuba e Venezuela usam urnas eletrônicas”. Fato ou Fake, do Grupo Globo, também verificou mensagens sobre urnas eletrônicas. Uma delas fazia referência a possível veto do Paraguai à utilização desses equipamentos brasileiros. Nesses casos, teorias da conspiração envolvendo outros países saltam aos olhos.

Na Aos Fatos, projeto mais abrangente de verificação, mais uma vez há referências e explicações sobre as urnas. A agência informa que, na primeira semana das eleições, foram encontradas 17.891 publicações consideradas de “baixa qualidade” sobre o pleito, de um total de 658.707 mensagens coletadas no período. Os termos que mais apareceram na coleta foram: Bolsonaro (851 menções), presidente (610) e candidato (606). Candidatos (510), Trump (426), pandemia (381) e prefeito (400) foram outros recorrentes.

A campanha ainda está fria e o fato de termos o noticiário bastante pautado pelos debates nacional, com destaque para a indicação de Kassio Nunes por Jair Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal (STF), e internacional, com as eleições norte-americanas, explicam isso.

Partido Novo, João Dória, Manuela D`Ávila e até Jesus foram tema de desinformação

Além de conteúdos sobre a urna, outros temas aparecem. No dia 2, o destaque foi uma mensagem referente ao partido Novo, alegando que um representante dele teria participado da criação de conselho político com partidos de esquerda contra Bolsonaro durante um encontro do movimento Direitos Já – Fórum da Democracia, o que não é confirmado pelo partido. Publicações do tipo acumulavam cerca de 6 mil compartilhamentos até aquela sexta, segundo a agência.

Outra checagem mostrou que são falsas as mensagens que apontam que o governador de São Paulo, João Doria, seria rejeitado por 98% da população.

Uma montagem de foto de Manuela D’Ávila (PCdoB), candidata à Prefeitura de Porto Alegre, vestindo camiseta com dizeres “Jesus é travesti” também voltou a circular. Até o dia 28, publicações recentes já acumulavam mais de 18 mil compartilhamentos com a mesma montagem, que foi recorrente em 2018, época em que também circulou informação de que a blusa continha, na verdade, a frase “rebele-se”.

Além desta, “Aos Fatos identificou, por exemplo, que a publicação que alegava que D’Ávila teria afirmado ser “mais popular que Jesus” foi compartilhada ao menos 10 mil vezes nas últimas 48 horas”, informa publicação do dia 29.

O fato de conteúdos notoriamente requentados serem novamente utilizados é um indício de que continuam servindo aos interesses de grupos que promovem campanhas de desinformação e de que estes seguem apostando na tática de fragilizar a confiança no sistema eleitoral e na própria democracia. Por outro lado, a situação demonstra os limites das checagens, seja porque não conseguem levar a verificação a quem teve contato com o conteúdo falso ou porque os receptores, mesmo sabendo ou desconfiando da veracidade de algo, participam deliberadamente das ações de compartilhamento.

A adesão da população à essas notícias pode ter várias explicações, entre elas a reafirmação de posicionamentos previamente existentes. Além disso, escreve Giuliano da Empoli em Engenheiros do Caos (Vestígio, 2019), para população que adere a líderes políticos de viés populista, “a verdade dos fatos, tomados um a um, não conta. O que é verdadeiro é a mensagem no seu conjunto, que corresponde a seus sentimentos e suas sensações”.

No YouTube predominam ataques à esquerda

A Aos Fatos produz um radar que também mapeia conteúdos categorizados como de baixa qualidade no YouTube. No mapeamento desta plataforma, aparecem com destaque ataques à esquerda. Na primeira semana das eleições, a agência apontou dois conteúdos como com “alta probabilidade” de ser desinformativo.

Um deles ganhou o título “Freixo capitalista e Felipe Santa Cruz jogando o jogo”. O vídeo faz referência a uma situação verídica: a controvérsia em torno da doação de Armínio Fraga e de outros empresários a candidato do PSOL. Freixo disse que, se a candidatura fosse impugnada, poderia deixar o partido. O youtuber, por sua vez, sentencia que o deputado “ameaçou sair do PSOL caso o partido não aceitasse doações polpudas de bilionários banqueiros brasileiros”. Depois, segue fazendo associações aos negócios da família de João Moreira Salles na extração de nióbio, cineasta que também fez doação para aquela candidatura, e apresenta posicionamento de Bolsonaro a favor da ampliação da exploração do minério, como se isso fosse prejudicar os Salles. A tese sustentada é que isso juntaria PSOL e Moreira Salles por dinheiro contra o presidente.

Na segunda parte do vídeo, o assunto é a fala do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, que classificou como qualificado o indicado de Bolsonaro ao Supremo. O posicionamento é apresentado como uma pecepção de “oportunidade” para piorar o que o youtuber aponta ser “um racha enorme na base conservadora por causa dessa escolha”, pois parte dela esperava alguém “claramente conservador e de direita, e esse é o motivo da nossa decepção”. Nesses casos, o que há é a abordagem distorcida de informações baseadas na realidade, mas manipuladas, com recursos ao exagero e à descontextualização.

O outro vídeo associado às eleições classificado como com “alta probabilidade” de ser desinformativo chama-se “Quem são os partidos da esquerda – cuidado”. Um apresentador expõe áudio atribuído ao pastor Silas Malafaia em que alerta “aos cristãos” sobre portaria do governo Bolsonaro sobre aborto e diz que ela impediria apenas a realização de interrupções não previstas em lei, o que não é verdade.
O youtuber menciona ação de partidos de esquerda no Supremo contra a portaria e pergunta: “é nesses partidos que você vai votar?”. Aborto, ideologia de gênero, família, Deus. A cantilena já conhecida é apresentada. E conclui: “se você é a favor da família, se você tem Deus no coração e na sua família, é obrigação orientar as pessoas em quem tem que votar e em quem não tem que votar”. Mais uma vez, há combinação de mentira, descontextualização e exagero, a partir de referência ao real, o que mostra a complexidade da desinformação e a multiplicidade de estratégias utilizadas para convencer e influenciar o público.

Estudos têm apontado que o YouTube favorece canais de extrema-direita por meio de seus algoritmos, recomendando-os porque conteúdos extremados, exagerados ou apelativos geram engajamento e mantêm a audiência conectada e produzindo dados. No período das eleições de 2018, reportagem do The Intercept Brasil revelou que dos dez canais que mais cresceram na plataforma metade era dedicada a promover Bolsonaro e outros extremistas de direita. Se está claro que velhas fake news estão sendo reutilizadas, importaria saber se a programação dos algoritmos também. Dada a opacidade das plataformas, essa informação dificilmente vira à tona ao longo do pleito.

É como se estivéssemos todos sob o impacto do complexo de Cassandra: avisos sobre os riscos da desinformação foram feitos, mas tomados como falsos e desacreditados. Enquanto isso, aquilo que é possivelmente ou mesmo sabidamente falso ganha as telas com ares de verdade. Resta saber se 2020 requentará 2018 também nas urnas.

O Brasil está preparado para enfrentar a desinformação nas eleições?

O Brasil está preparado para enfrentar a desinformação nas eleições?

Myanmar, Reino Unido, Índia, Austrália, Estados Unidos, Indonésia, México. A lista, longe de exaustiva, mostra a diversidade de países que têm vivenciado problemas associados à desinformação nas eleições e que, por isso, tornaram-se objetos de políticas específicas por parte do Facebook, corporação dona também do WhastApp e do Instagram.

Em setembro, esse tipo de interferência foi mais uma vez confirmado por uma ex-cientista de dados do Facebook, Sophie Zhang, que produziu memorando em que afirmou que perfis falsos estão prejudicado eleições. No documento, que acabou vazando, Zhang colocou em questão a capacidade do Facebook de lidar com a desinformação, especialmente em países que não falam inglês, tanto pela priorização quanto pelo uso de sistemas automatizados que possuem dificuldades para compreender esses contextos.

No Brasil, a desinformação tem sido apontada como problema grave pelas autoridades. Ao assumir a presidência do TSE em maio, o ministro Luís Roberto Barroso revelou destacada preocupação com “milícias digitais” e mencionou necessidade de colaboração das plataformas no combate a elas, bem como de apoio ao jornalismo profissional.

Na mesma toada, quando ocupou aquele cargo em 2018, o agora presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux destacou o combate às chamadas fake news. Na cerimônia de posse na presidência do Supremo, ouviu do ex-presidente da Corte, Dias Toffoli, que a abertura do controverso inquérito das fake news foi “a decisão mais difícil” de sua gestão.

Impasse no TSE quanto à desinformação na campanha de Bolsonaro

Ocorre que há um abismo entre o reconhecimento e a adoção de medidas efetivas. Prova disso é a perpetuação, desde 2018, de processos que se referem à campanha da chapa de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão. Tramitam no TSE ações que pedem sua cassação por possíveis ilegalidades na realização de disparos em massa pelo WhatsApp e também por uso fraudulento de nome e CPF de idosos para registrar chips de celular.

Apesar de ter gerado discussões sobre a validade do resultado e fomentado a instalação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, a chamada CPMI das fake news, a Justiça não tem sido célere. Há um ano o WhatsApp chegou a reconhecer envios maciços de mensagens, mas as ações ainda estão em processo de coleta de provas. Também se espera a decisão do ministro Alexandre de Moraes sobre o compartilhamento de provas colhidas no inquérito.

Os argumentos jurídicos são fartos: abuso de poder econômico, uso indevido dos meios de comunicação digital, uso de robôs em campanha eleitoral, falsidade ideológica para propaganda eleitoral e compra irregular de cadastros de usuários. Não há, contudo, previsão de julgamento.

Os processos preocupam Bolsonaro.

Em sua “live” no dia 24 de setembro, ao lado do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e após as críticas às mentiras em seu discurso na ONU, Bolsonaro mostrou uma montagem que circulou na internet com a sua imagem e argumentou ironicamente para seu público que, enquanto esse tipo de conteúdo é liberdade de expressão, “se fosse o contrário seria fake news, passível de cassar o mandato, de prisão etc.”. O presidente acrescentou que “tem processo no TSE para cassar a minha chapa como se eu tivesse sido eleito por fake news”.

Sem julgamento apropriado, pouca coisa pode mudar

O julgamento das ações teria sido fundamental tanto para se ter respostas sobre o que efetivamente ocorreu nas eleições de 2018 quanto para que houvessem mais mecanismos de proteção da sociedade do mau uso da internet. É fundamental consolidar o entendimento jurídico sobre temas que serão enfrentados pelos tribunais regionais eleitorais nestas eleições.

Medidas como a que permitiu, desde 2018, o impulsionamento de conteúdos de internet, possibilitam, mediante pagamento, a ampliação do alcance de postagens em redes e a priorização de conteúdos para facilitar sua disponibilização por meio de aplicações de busca na rede.

Tais mecanismos acabam ampliando a desigualdade entre quem pode e quem não pode pagar por eles. Além disso, é por meio do impulsionamento que é feita a segmentação de públicos, uma das táticas utilizadas em campanhas de desinformação e que compromete a transparência do debate público, pois muitos posts ficam visíveis apenas para o público-alvo, contribuindo na criação de bolhas, reforço de visões de mundo e pouca (ou nenhuma) exposição ao contraditório.

Porém, ao invés da revisão dessas regras, vemos a ampliação e profissionalização de empresas de marketing e de plataformas para ofertar “soluções” baseadas em dados, segmentação, recomendação de conteúdos. O que aprofunda distâncias e mina o debate público.

Marketing digital e responsabilização de candidatos

No Portal Eleições 2020 do Google, são apresentadas como “boas práticas de campanha”: anúncio na pesquisa do Google, sendo possível escolher as palavras-chaves relacionadas à campanha para facilitar a oferta para pessoas que busquem temas semelhantes no site. O Google concentra mais de 90% das buscas no mundo. Sugerem ainda a inclusão de propaganda no YouTube, segmentando por público-alvo, palavras-chave, tópicos, canais, perfil demográfico e conteúdo. E ainda o uso de “display”, um tipo de anúncio que é exibido durante a navegação em outros sites.

A utilização de dados para obtenção de informações e produção e envio de conteúdos segmentados virou o carro-chefe dos negócios. No site do Google, é informado que “Dados Trends [tendências de dados] podem oferecer uma lente poderosa naquilo que os usuários estão curiosos a respeito e em como as pessoas ao redor do mundo reagem a acontecimentos importantes”.

Enquanto seguem pendentes de julgamento questões de caráter mais estruturante dos modelos de negócios das plataformas e das campanhas de desinformação, a legislação incorporou dispositivos que penalizam os usuários, como o que prevê pena de dois a oito anos de reclusão para quem, comprovadamente ciente da inocência de um candidato, divulgar uma notícia falsa sobre o mesmo durante as eleições. Também os partidos foram comprometidos.

Nesse sentido, a Resolução do TSE nº 23.610/2019 estendeu ao candidato a responsabilidade por todo o conteúdo que seja veiculado a seu favor, inclusive por terceiros. Presume-se que ele, seu partido ou sua coligação tenham tomado conhecimento do teor e concordado com a divulgação. Isso pode responsabilizá-lo também por disseminação de conteúdo falso, descontextualizado ou calunioso. Para esse diálogo com partidos, o TSE mantém, desde agosto de 2019, o Programa de Enfrentamento à Desinformação com Foco nas Eleições 2020, que também envolve associações de imprensa e outros grupos. O TSE também lançou a campanha “#Euvotosemfake”.

Quanto às plataformas, nas últimas semanas o TSE comemorou parceria com o WhatsApp, que anunciou que criaria chatbot para denúncias e figurinhas sobre voto consciente. Para conversar com o assistente e ficar bem informado sobre cuidados sanitários, dicas ao eleitor, regras do processo, notícias checadas e dados da Justiça Eleitoral, o usuário tem que adicionar o número 06196371078 e entrar em contato, o que também pode ser feito pelo link wa.me/556196371078. Não foi feita notificação direta para os usuários até agora, portanto eles também terão que tomar conhecimento do mecanismo. Segundo o TSE, a cooperação com o WhatsApp prevê também a criação de um formulário para denunciar contas suspeitas de realizar disparos em massa, conduta proibida pela lei eleitoral e também pelos Termos de Serviço do aplicativo.

Para ampliar o acesso, o TSE oficializou no último dia 29 um acordo com a Conexis Brasil Digital, que representa operadoras de telecomunicações, para garantir que usuários possam acessar conteúdos do site da Justiça Eleitoral sem gastar seu pacote de dados entre setembro e novembro. Essas medidas são importantes, mas absolutamente incapazes de enfrentar a máquina de produção de desinformação.

Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais

A novidade que pode ter maior impacto, do ponto de vista legislativo, é que em setembro deste ano passou a vigorar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). A lei já era referida na resolução do TSE sobre propaganda, que menciona que esta pode ser feita por meio de mensagem eletrônica para endereços cadastrados gratuitamente pelo candidato, pelo partido político ou pela coligação, observadas as disposições da LGPD quanto ao consentimento do titular. Mas sua vigência inaugura novo período de afirmação da proteção de dados como direito. Seguindo a regra, práticas bastante comuns como a reunião de contatos e o disparo de propaganda ficam vedadas.

Restam dúvidas, porém, quanto à capacidade das instituições internalizarem rapidamente os dispositivos da lei e desenvolverem uma postura proativa na fiscalização da propaganda na internet. Na pré-campanha, casos de uso de dados, impulsionamento por perfis de apoiadores e desinformação já vieram à tona.

Estarão as autoridades preparadas para, nos milhares de municípios brasileiros, enfrentar de forma efetiva a desinformação? Pelo visto nos últimos dois anos, a resposta não tende a ser animadora, até porque falamos de uma eleição mais capilarizada e de tribunais mais diversos e dispersos.

Crivella requenta “kit gay” e mostra o papel de políticos na desinformação

Muita gente pensa que a desinformação ocorre apenas no “submundo” da internet. Mas não é bem assim. No primeiro debate entre candidatos à prefeitura do Rio de Janeiro, promovido pela Band na quinta-feira, 1, ficou explícito o recurso a esse tipo de estratagema, mesmo diante das câmeras e do possível escrutínio público.

Prefeito e candidato à reeleição, Marcelo Crivella (Republicanos) requentou informação falsa sobre “kit gay” ao afirmar que: “Se o PSOL ganhar a eleição, nossas crianças vão ter uma coisa que tinha em casa, orientação sexual. Vai ter kit gay na escola e e vão induzir a liberação das drogas”.

Certamente seguindo o script combinado previamente, a fala surgiu em confronto com a candidata do PSOL, Renata Souza. Antes da discussão entre os dois, Clarissa Garotinho (PROS) havia questionado Crivella sobre a gestão das contas da prefeitura.

Crivella, na sequência, teve a oportunidade de começar e perguntou a Renata sobre sua opinião acerca da “ideologia de gênero” e prevenção às drogas. Renata optou por enfatizar, na resposta, críticas à condução do prefeito no controle da pandemia. Na tréplica, ele tirou do bolso a velha “fake news”, em uma tentativa de colocar o debate no campo em que sua torcida gosta de vê-lo jogando.

Eleitores de Bolsonaro acreditaram na existência do “kit gay”

Direto do armário de 2018, o “kit gay” voltou à tona, mostrando que as táticas não foram renovadas. O “kit” foi o segundo boato que mais ganhou lastro no Facebook e no Twitter naquele pleito, segundo levantamento da Aos Fatos, que registrou mais de 400 mil compartilhamentos com esse teor.

Confirmando o impacto, pesquisa IDEIA Big Data/Avaaz mostrou que 84% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram na existência do “kit gay”. Sua criação foi atribuída a Fernando Haddad (PT) por Bolsonaro, inclusive durante entrevista como candidato no Jornal Nacional. Na importante bancada, com um exemplar à mão, o hoje presidente afirmou que o livro Aparelho Sexual e Cia tinha sido distribuído em escolas públicas pelo Ministério da Educação sob o comando de Haddad.

O suposto “kit gay”, além de bastante conhecido e desmentido, chegou a ser objeto de liminar do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que requereu a remoção de 36 conteúdos relacionados a ele por Bolsonaro e seus apoiadores. O relator do caso, ministro Carlos Horbach, destaca em sua decisão que “a difusão da informação equivocada de que o livro em questão teria sido distribuído pelo MEC, no referido projeto, no PNLD ou no PNBE, gera desinformação no período eleitoral, com prejuízo ao debate político, o que recomenda a remoção dos conteúdos com tal teor”.

Uma semana depois dessa medida, Bolsonaro voltou a veicular conteúdos sobre o mesmo tema, em inserções na rádio e na TV, ignorando o entendimento da Justiça.

Quais medidas cabem às falas de Crivella?

Na atual eleição, consta na legislação que é considerado crime previsto no Código Eleitoral (Lei 4.737, de 1965) divulgar denúncias caluniosas contra candidatos em eleições, conforme alteração legislativa aprovada pelo Congresso em 2019. A candidata Renata Souza já informou que vai acionar a justiça para que o candidato seja responsabilizado.

Mas o debate sobre o tema não é apenas da esfera jurídica. É do próprio fazer político que se trata. Do uso de desinformação de forma escancarada, banalizada, sem que a sociedade reaja criticamente à altura. Um uso que se faz de forma intencional e estratégica, como apontamos em artigo anterior neste Observatório das Eleições. Que ocorre sem que tenhamos sequer nitidez sobre a extensão do impacto de conteúdos desinformativos ou possibilidade de alcançar os mesmos receptores para que conheçam outras versões dos fatos.

Políticos e disseminação de fake news

O caso, infelizmente, não é isolado. Lançado nesta semana, estudo da Universidade de Cornell indica forte papel de Donald Trump na disseminação de notícias falsas sobre o coronavírus. Pesquisadores mapearam 38 milhões de reportagens publicadas entre 1º de janeiro e 26 de maio e constaram que, em mais de 522 mil artigos, houve desinformação. Em quase 38% destes casos, a discussão partiu de Trump, por isso considerado no estudo o maior impulsionador da “infodemia”.

Nos conteúdos, foram promovidas “curas milagrosas” não comprovadas para a Covid-19 ou esta foi apresentada como “farsa do Partido Democrata” com o objetivo de atacar o atual presidente, que testou positivo para o coronavírus.

O interessante do estudo é que ele comprova que a desinformação não está apenas associada às mídias digitais, tendo espaço na mídia tradicional e também na online, o que o caso Crivella também deixa ver. Além disso, destaca o papel central de agentes políticos em sua promoção.

Bastante recorrente, esse tipo de vinculação é percebida pela população. De acordo com o Digital News Report 2020, estudo feito a partir da parceria entre Reuters Institute e Universidade de Oxford, os políticos domésticos são vistos como os principais responsáveis por informações falsas e enganosas online (40%). Depois estão ativistas (14%), jornalistas (13%), pessoas comuns (13%), e governos estrangeiros (10%). Estados Unidos, Brasil, Filipinas e África do Sul são os países com mais registros de culpabilização de políticos.

O levantamento, que ouviu mais de 80 mil pessoas em 40 países, a partir questionário online aplicado entre o fim janeiro e o início de fevereiro, também mostra que mais da metade (56%) dos entrevistados, repetindo o que havia sido diagnosticado em 2019, permanece preocupado com o que é real e falso na internet quando recebe uma notícia. A preocupação tende a ser maior em países do Sul global. O Brasil lidera a lista (84%), seguido de Quênia (76%), e África do Sul (72%).

Essa situação deve lançar luz sobre o problema e direcionar nossas buscas por respostas para os agentes que promovem desinformação intencionalmente e que se valem de sua projeção como figuras públicas e mesmo autoridades para influenciar a população e subverter o debate democrático.