Contas aprovadas com ressalvas: legitimidade eleitoral em xeque?

Contas aprovadas com ressalvas: legitimidade eleitoral em xeque?

Os esforços da regulação jurídica do financiamento de partidos políticos e candidatos, considerada em muitos países uma espécie de “legislação interminável”, baseiam-se em um ímpeto moralizante da política.

Dito de outra forma, espera-se que a correta aplicação dos limites e procedimentos estabelecidos no âmbito da legislação tenham o condão de afastar o abuso do poder econômico na competição eleitoral assim como garantir, no seio da esfera pública, uma reserva de legitimidade dos partidos políticos e seus agentes por meio da transparência de seus livros contábeis.

Deve-se ressaltar que ambos os aspectos mencionados tornam-se bastante sensíveis em anos eleitorais, pois é nesse momento que as atenções do público em geral voltam-se à competição em torno dos diversos cargos políticos em disputa.

Da prestação ao julgamento de contas eleitorais

Especificamente no que tange ao julgamento de contas eleitorais de candidatos a cargos eletivos e partidos políticos, o procedimento, que é regulado tanto pela Lei nº 9.504/97 assim como por diversas resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), baseia-se nas informações prestadas virtualmente pelos candidatos por meio do Sistema de Prestação de Contas Eleitorais – SPCE. Os documentos digitalizados são, então, incluídos automaticamente no Processo Judicial Eletrônico (PJe) e os autos digitais são remetidos ao órgão responsável por realizar a análise técnico-contábil.

As informações prestadas pelos candidatos são sistematizadas e publicadas após o prazo final de apresentação das contas eleitorais, de forma que qualquer candidato, partido, coligação ou o Ministério Público podem apresentar impugnação à prestação de contas em até três dias, contados a partir da publicação do edital. Não havendo impugnação, será elaborado o chamado relatório preliminar de contas, ocasião em que o órgão técnico da Justiça Eleitoral poderá determinar diligências específicas para o saneamento de eventuais incompletudes ou inconsistências no âmbito das contas prestadas pelo candidato ou partido político.

A análise técnico-contábil termina com a elaboração do relatório conclusivo de prestação de contas, que será posteriormente enviado para o Ministério Público para a emissão de parecer no prazo de dois dias. Após o posicionamento do Ministério Público, a Justiça Eleitoral manifesta-se sobre a regularidade das contas prestadas, julgando pela aprovação, aprovação com ressalvas, desaprovação ou não prestação das contas.

Na falta de tempo hábil…

O art. 30, § 1º da Lei nº 9.504/97 estabelece que a decisão que julgar as contas dos candidatos eleitos deve ser publicada em até três dias antes da diplomação. Isso significa que, em consonância com art. 29, § 2º da referida lei, não há diplomação sem o respectivo julgamento das contas. Já as prestações de contas dos candidatos não eleitos serão apreciadas em momento posterior.

Nesse aspecto, as eleições municipais de 2020 representarão um desafio à capacidade técnica da Justiça Eleitoral. Como destacou João Andrade Neto, houve um incremento de 45 mil candidatos em relação às eleições de 2016, o que necessariamente implica em um aumento do volume de contas a serem analisadas e julgadas. Isso se somaria a todo o esforço operacional de manutenção do calendário eleitoral em meio ao caos sanitário gerado pela pandemia.

Há de se temer que, em meio ao imenso volume de trabalho e com a falta de tempo hábil, a solução intermediária expressa pela aprovação de contas com ressalvas torne-se corriqueira. Introduzida no ordenamento jurídico pela Lei nº 12.034/2009, a aprovação com ressalvas pode ocorrer mesmo com a presença de erros materiais nas contas prestadas por partidos ou candidatos.

Segundo a jurisprudência do TSE, incidem nessa hipótese pequenos valores materiais ou erros que não impedem a afirmação no sentido da lisura das contas prestadas. Até mesmo em situações envolvendo doações vedadas pela lei eleitoral, tem-se optado pela aprovação das contas com ressalvas. Valendo-se dessa cláusula polivalente – como afirmou o ministro do STF Marco Aurélio – a ausência de tempo hábil ou a insuficiência de pessoal para a análise de um grande volume de contas deixa de ser um impeditivo para o cumprimento dos prazos estabelecidos pela legislação eleitoral.

Apesar da previsão normativa e o assentamento jurisprudencial de tal prática, resta saber se o artifício criado não prejudica a finalidade que justifica a regulação jurídica do financiamento da política, qual seja, a garantia da lisura do processo eleitoral.

* Douglas Carvalho Ribeiro é doutorando em Direito na Universität Hamburg (Alemanha), membro da Albrecht Mendelssohn Bartholdy Graduate School of Law (AMBSL) e da Academia de Direito Político e Eleitoral (ABRADEP), Advogado.

O que podemos esperar da propaganda eleitoral durante uma pandemia?

O que podemos esperar da propaganda eleitoral durante uma pandemia?

A pandemia do COVID-19 trouxe impactos para diversos setores da sociedade, afetando, também, as eleições de 2020. Além da mudança das datas, a Justiça Eleitoral adotou uma série de protocolos sanitários para garantir uma eleição segura.

Contudo, uma eleição não é uma escolha protocolar em que o cidadão simplesmente cumpre uma obrigação legal. É um momento fulcral em nossa democracia, visto que é a oportunidade de escolha dos rumos da política, no caso de 2020, municipal. Para que o eleitor seja capaz de fazer uma escolha consciente das lideranças políticas que o representarão, ele precisa informar-se e é nesse momento que podemos refletir sobre a importância da propaganda eleitoral para a democracia.

Muito além de ser um direito das candidaturas, a propaganda eleitoral é um direito dos cidadãos, porque, além de ter acesso às propostas políticas dos candidatos, o eleitor tem contato com a crítica política dos principais concorrentes ao pleito.

Apesar de sua importância, os movimentos recentes de “mini-reforma eleitoral”, com o objetivo de reduzir os custos das campanhas, passaram a diminuir cada vez mais as possibilidades de propaganda. Nesse sentido, tivemos nos últimos anos: (i) a redução do tempo de propaganda eleitoral de 90 para 45 dias; (ii) a vedação à veiculação de propaganda em outdoors, cavaletes, bandeiras fixas, muros e fachadas; (iii) a não veiculação de propaganda em rede das candidaturas à vereança no horário eleitoral gratuito; (iv) o impedimento de veiculação em carro de som ou minitrios em eventos que não sejam carreatas ou congêneres; entre outros.

Tendo em vista as restrições à realização de “campanhas tradicionais”, aos poucos as propagandas passaram a migrar cada vez mais para o ambiente virtual. As campanhas passaram a ver as redes sociais como um ambiente propício, em razão do seu baixo custo e alcance do eleitorado, mesmo se pensarmos nas limitações causadas pelos algoritmos e a criação de “bolhas”. Cabe ressaltar que tal fenômeno tende a se intensificar com o advento da pandemia, em que várias campanhas devem migrar para o ambiente virtual.

Tendo em vista esse “novo” cenário, a legislação eleitoral, aos poucos, começou a regulamentar a propaganda na internet. Foram permitidas (i) a arrecadação de recursos em sites; (ii) o incentivo ao financiamento coletivo através de plataformas de crowdfunding; (iii) o impulsionamento pago de conteúdo; e (iv) a veiculação de propaganda em sites¸ redes sociais e blogs de candidatos.

Mas as experiências recentes com a propaganda na internet demonstraram problemas não aventados anteriormente pela legislação eleitoral. De um lado, temos a desinformação, comumente denominada como fake news. Através de uma coleta massiva de dados e da utilização dos algoritmos de maneira estratégica, algumas candidaturas foram acusadas de promoverem uma campanha ordenada de desinformação em massa, repassando mensagens e notícias falsas sobre outras candidaturas.

Por outro lado, o mecanismo legal normalmente utilizado pelas candidaturas para enfrentar a disseminação de desinformação é a remoção do conteúdo, estratégia muito criticada por especialistas pelo potencial da desinformação ser confundido com o direito à crítica ou opinião.

Dessa forma, em “eleições pandêmicas” encontramos dois desafios para realização da propaganda eleitoral.

Nas “campanhas de rua”, além das inúmeras vedações mencionadas acima, as candidaturas deverão preocupar-se com as condições sanitárias de seus apoiadores. Cabe ressaltar que a Emenda Constitucional 107/20, responsável pelo adiamento do pleito, não estabeleceu nenhuma vedação para realização de propaganda eleitoral durante o período da pandemia. Pelo contrário, a norma permitiu uma flexibilização da realização de publicidade institucional de órgãos públicos municipais com o objetivo de promover atos e campanhas destinados ao enfrentamento da pandemia, o que, em outros tempos, poderia ser considerada uma conduta vedada, nos termos do art. 73 da Lei, 9.504/97.

Além disso, a EC impediu que norma municipal limitasse a realização de propaganda eleitoral, salvo se houver decisão fundamentada em prévio parecer técnico emitido por autoridade sanitária estadual ou nacional. A intenção desse dispositivo foi de limitar o abuso do poder político, visto que candidatos à reeleição poderiam tentar impedir a campanha eleitoral de seus adversários através de norma municipal.

Já nas “campanhas virtuais” o desafio é tentar minimizar os efeitos da desinformação, sem que o eleitor tenha cerceado seu direito de expressar-se livremente. Para tanto, a própria Resolução 23.610/2019, que regulamenta a propaganda eleitoral na internet deixa claro o respeito à liberdade de expressão.

Dessa forma, além das naturais adversidades de uma eleição durante a pandemia, a Justiça Eleitoral vai encontrar um enorme desafio em fiscalizar a propaganda eleitoral, seja nas campanhas de rua ou nas virtuais.

* Felipe Gallo da Franca é mestre em Direito Político pela UFMG e membro da Comissão de Direito Municipal da OAB-MG.

Candidaturas coletivas: parte do problema ou da solução?

Candidaturas coletivas: parte do problema ou da solução?

Alguns dias após o encerramento do período de registro de candidaturas, o Ministério Público Eleitoral do Ceará pediu a impugnação de uma candidatura coletiva do PSOL para a Câmara Municipal de Fortaleza. Nessa modalidade, um grupo promete atuar em conjunto durante o mandato embora o registro da candidatura seja individual, como determina a Constituição. A promotora que conduz a ação argumenta que não haveria respaldo jurídico para esse modelo de candidatura e que isso poderia “induzir o eleitorado ao erro”. Argumentos, no mínimo, discutíveis.

As candidaturas coletivas e mandatos compartilhados não são novidade. Vinculados às lutas e movimentos por aprofundamento da democracia, da ampliação e pluralização da representação política e do fortalecimento dos mecanismos de accountability eleitoral, as experiências multiplicam-se. O que varia são a iniciativa, acesso, distribuição de poder, processo de tomada de decisão, partilha de custos e benefícios, mecanismos de interação, etc.

No cenário internacional, são exemplos o Demoex (Suécia, 2002-2013), o Partido Pirata (em mais de 30 países, desde 2006), o Senator Online (Austrália, 2007-2019), Movimento Cinco Estrelas (Itália, desde 2009), DemocracyOS (Argentina, desde 2012) e o Podemos (Espanha, desde 2014).

No Brasil, desde 1994 vem sendo ampliadas as experiências de candidaturas que incorporam alguma lógica coletiva/compartilhada. Foram mais de cem campanhas legislativas em todo o Brasil, em diferentes momentos, para diferentes cargos (vereador, deputado estadual, deputado federal e senador), em pelo menos cinquenta municípios, espalhados por 17 estados da federação, representando mais de vinte partidos políticos, segundo o levantamento da Raps.

Crescem as candidaturas coletivas pelo Brasil

Embora não haja previsão legal – a PEC 379/17, que visa regulamentar as candidaturas e mandatos coletivos está em tramitação – elas são uma realidade que se expandiu na eleição municipal deste ano. Apenas na capital paulista são pelo menos 34 candidaturas coletivas; no Rio de Janeiro somam-se, no mínimo mais duas. Em Porto Alegre, há notícia de pelo menos uma candidatura coletiva. Em Salvador mais uma. E em Belo Horizonte, onde já há experiência de mandato coletivo na Assembleia Legislativa, pelo menos uma dezena de candidaturas coletivas disputam vaga na Câmara de Vereadores. As chapas organizadas para disputa nesta modalidade mobilizam candidatos de partidos à esquerda e à direita do espectro político-ideológico: PSOL, PT, PC do B, mas também REDE, DEM e MDB lançam-se à experiência.

A falta de previsão legal não torna a experiência ilegal, no entanto. Isto porque o registro da candidatura é feito em nome de um candidato, que deverá atender a todos os requisitos legais e a prática do mandato coletivo não fere os ditames constitucionais, legais e regras das casas legislativas.

O que acontece é que o mandatário possui um acordo informal com o restante do grupo para que as decisões políticas, definição de projetos de leis e votação sejam tomadas em conjunto. O mandatário torna-se uma espécie de “porta-voz” do grupo que, de resto, vai participar nos bastidores, nas discussões e debates políticos.

Nos outros estados o eleitor pode escolher, mas no Ceará não?

A atuação do Ministério Público do Ceará, portanto, é no mínimo discutível, do ponto de vista do mérito. Mas o nosso ponto aqui é outro e anterior. O exemplo de Fortaleza é ilustrativo de que as instituições judiciais eleitorais, pensadas para assegurar a justiça do pleito, entendida como neutralização dos impactos de elementos não políticos no resultado, insere, ela mesma, dimensões de instabilidade. E isso ocorre justamente no momento em que a soberania popular deveria ser o principal juiz do processo – as eleições.

Particularmente, o Ministério Público Eleitoral, a exemplo da atuação dos diferentes Ministérios Públicos em questões de outra ordem (defesa de direitos difusos e coletivos e controle e combate da corrupção), arvora-se à representação do interesse público sob o pressuposto de uma discutível hipossuficiência da sociedade.

Ou seja, supõe-se que os eleitores não seriam capazes de decidir por si só se uma candidatura coletiva é melhor que a individual. Lança-se em uma disputa pela representação dos interesses da sociedade sem que se possa vislumbrar qualquer mecanismo de autorização desta mesma sociedade, tampouco de responsabilização de promotores e procuradores.

Some-se a isto o fato de que a autonomia funcional dos membros do Ministério Público – aqui incluídos os promotores eleitorais – implique em uma completa falta de previsibilidade acerca dos resultados de sua atuação, quando observados em conjunto.

Concretamente, é possível que no Ceará os eleitores não possam aderir às candidaturas coletivas, enquanto em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador e outras capitais e municípios brasileiros, experiências de mandatos coletivos sejam bem-sucedidos eleitoralmente.

Como diz o jargão, e que se aplica para este caso, muitas vezes o remédio, em altas doses, pode se transformar em veneno.

Eleições de toga: por que devemos olhar para a Justiça Eleitoral?

Em análises sobre eleições, comumente estamos de olho nos candidatos, seus partidos e nas pesquisas de opinião. A discussão sobre as regras eleitorais, embora de interesse mais restrito, também atrai especialistas e políticos: qual o impacto de uma determinada regra sobre as estratégias e os resultados eleitorais?

Este Observatório das Eleições 2020 reúne alguns dos mais importantes cientistas políticos brasileiros para, sob este espírito, debruçar-se sobre os diversos aspectos das eleições municipais que acontecem ainda este ano. Não faltarão análises competentes sobre as candidaturas mais relevantes, as alianças, o desempenho dos partidos e, também, sobre o modo como a mudança excepcional das regras de organização desta eleição impacta no seu resultado. O fim da coligação partidária para eleições proporcionais irá diminuir o número de partidos com representação nas câmaras de vereadores? As eleições ficarão restritas aos assuntos locais ou o debate será “nacionalizado”?

Mas aqui neste Observatório os leitores encontrarão, também, atenta e detalhada análise sobre o desempenho dos atores da Justiça Eleitoral. E de que vale enveredar esforços para compreender e acompanhar a atuação de juízes e promotores eleitorais? Encarregados de manter a lisura do pleito, em um modelo não tão comum em perspectiva comparada – de chamada governança eleitoral – atores que não disputam os votos dos eleitores, não aparecem nos programas de rádio e TV, vem ganhando protagonismo pela capacidade crescente de interferir em qualquer fase do processo eleitoral – replicando aquele que parece ser o padrão que se estabeleceu entre as instituições judiciais e políticas no Brasil. Da convenção partidária à cassação de mandato, passando pelo registro das candidaturas e pela propaganda eleitoral gratuita, (quase) tudo pode ser objeto de intervenção ministerial e decisão judicial. O impacto sobre a disputa travada entre partidos e candidatos e, por consequência, sobre o resultado das eleições, é extenso – e, muitas vezes, indesejável do ponto de vista da democracia.

O exemplo mais recente de como uma decisão jurídica pode modificar o jogo eleitoral talvez seja o do impedimento da candidatura do ex-presidente Lula nas últimas eleições presidenciais de 2018. Baseados em decisões anteriores que permitiram que condenados (mesmo em 2º instância de julgamento) concorressem, os advogados do ex-presidente solicitaram que ele pudesse disputar o pleito, cujas pesquisas apontavam sua superioridade. No entanto, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em uma decisão de 6 votos contra 1, determinou que Lula não poderia enfrentar seus adversários. Ainda que não se possa estabelecer uma relação direta entre a decisão do TSE e o resultado das eleições presidenciais, há indícios de que a substituição do ex-presidente por seu vice, Fernando Haddad, na corrida eleitoral, teve impacto sobre a disputa, considerando, particularmente, que a eleição do atual presidente surpreendeu a maior parte dos analistas que até então indicavam ser remotíssimas suas chances de vitória.

É claro que muita coisa poderia ter acontecido se Lula pudesse ter disputado o pleito em 2018, inclusive sua derrota. Mas é também evidente que aquela decisão – tomada por juízes, não eleitos, diga-se de passagem – teve um impacto no resultado e nos rumos do país, hoje sob a batuta do ex-capitão – até ali um deputado de atuação política marginal de um partido sem relevância. Se regras importam no resultado do jogo, os juízes eleitorais – que as fazem e as aplicam – também.

Agora em 2020, teremos eleições para prefeito e para vereadores em mais de cinco mil municípios espalhados pelo país. Há cidades com mais eleitores do que muitos países, como São Paulo, com mais de oito milhões de eleitores, contrastando com Araguainha (MT) onde apenas 954 cidadãos estão aptos a votar. Em comum, o fato de que independentemente da extensão do colégio eleitoral, haverá em cada um dos municípios juízes e promotores eleitorais acompanhando o processo e empoderados, por exemplo, para retirar candidatos do pleito e até cassar os eleitos pelo voto popular, em algumas circunstâncias. Para que se tenha uma ideia da extensão do impacto da atuação dos promotores e juízes eleitorais, convém lembrar que na última eleição municipal, em 2016, 145 candidatos mais votados em diversos municípios não tinham, no dia da eleição, uma resposta definitiva de seu registro de candidatura. Isso implica dizer que, mesmo tendo sido ungidos pelo voto popular, não sabiam se, de fato, assumiriam os respectivos mandatos.

Nos casos de indeferimento do registro de candidatura do titular ou vice em eleições majoritárias (como as de prefeito, agora em 2020), demanda a realização de novas eleições – e o mesmo se diz em relação à cassação de diploma ou mandato. É inegável que a cassação do mandato, registro ou diploma de um prefeito, por exemplo, importa no dilema entre legalidade e soberania. Por um lado, pretende-se restaurar a legitimidade de eleições supondo o resultado viciado por uma irregularidade; por outro, contudo, esvazia-se a soberania popular, pelo menos até que novas eleições sejam realizadas. E esta é uma tarefa que muitas vezes fica enredada nas disputas judiciais ao longo das várias instâncias da Justiça Eleitoral, operando vácuos de soberania extremamente prejudiciais não apenas para o eleitor imediato, mas para a democracia de um modo geral.

Alguns dados gerais sobre realização de eleições suplementares, aquelas feitas fora do calendário nacional, ilustram o quadro. Em 2012 foram realizadas oito, sendo a metade delas suspensas em meio a disputas judiciais. Em 2014 foram realizadas 29 eleições suplementares, das quais dez foram suspensas judicialmente. No ano seguinte, em 2015, realizaram-se mais 23 eleições suplementares, suspendendo-se judicialmente quatro; em 2017, das 61 eleições suplementares realizadas, 4 foram suspensas; e, finalmente, em 2018, foram realizadas 35 eleições suplementares, das quais duas foram suspensas e um judicialmente cancelada.

Considerando o modelo de governança eleitoral em vigor no Brasil – em que a justiça eleitoral acumula funções normativas, administrativas e jurisdicionais – a estabilidade do processo democrático e, consequentemente, a confiança do eleitor, dependem do desempenho de promotores e juízes eleitorais. As alterações normativas realizadas às vésperas das eleições deste ano ampliam, ainda mais, os fatores de instabilidade. Acompanhar, portanto, a atuação dos juízes e promotores eleitorais tornou-se tão importante quanto observar os eleitores, os candidatos e seus partidos.

Adiamento das eleições e diálogo: um novo tempo ou soluço pandêmico?

Uma das mais singelas definições de democracia eleitoral estabelece dois pressupostos: certeza em relação às regras e incerteza em relação aos resultados. Quem acompanha a loteria da legislação eleitoral e das decisões judiciais no Brasil já não podia ter muito apego à primeira premissa.

O campo da competição pela representação política nunca foi muito estável. É frequente e abundante a alteração das regras de uma eleição para outra: 365 modificações na legislação eleitoral entre 2012 e 2016, por exemplo. Assim como se tornou recorrente uma interpretação um tanto quanto livre e criativa das normas eleitorais na administração das eleições e na jurisdição eleitoral.

Um dos aspectos das regras, no entanto, era certo como a curvatura da Terra: o calendário eleitoral. As modalidades de propaganda mudavam, a liberdade para realizar coligações era relativizada, havia dúvidas sobre a aplicação imediata e retroativa das restrições ao direito de se apresentar como alternativa ao eleitorado. Mas a eleição tinha data certa. Até 2020.

Em face de uma pandemia e de recomendações sanitárias, uma emenda à Constituição afasta o calendário eleitoral previsto constitucional e legalmente. Altera a data das eleições em todos os 5.570 municípios do país e vai além: cria uma competência normativa para a Justiça Eleitoral que não encontra abrigo constitucional.

Para que tenha alguma utilidade prática, essa emenda afasta a incidência do princípio da anterioridade em matéria eleitoral, que impõe que a lei que altera o processo eleitoral não pode ser aplicada à eleição que ocorra a menos de um ano da mudança. Estamos falando da Emenda Constitucional (EC) 107/2020.

O adiamento das eleições é excepcional – é pandêmico

Tenho muitas dúvidas sobre a necessidade e a conveniência do adiamento da eleição em todas as cidades. Em um país deste tamanho, com realidades e medidas sanitárias tão distintas, tomar uma decisão linear pode ter impactos negativos na já abalada confiança da população na democracia e nas instituições.

Como explicar que em setembro há escolas funcionando, shoppings abertos, parques, praias e bares lotados, mas não é possível fazer a eleição em outubro? A concentração anti-federalista de poderes em uma autoridade eleitoral centralizada, no entanto, levou a essa decisão.

A EC 107 não integra o texto constitucional. É, no dizer do senador Weverton Rocha (PDT), um texto exclusivo, específico, único. Aplica-se às eleições “pandêmicas” de 2020 e só: não pode ser usado como referência, como precedente. Como um Gore vs. Bush, seus dispositivos não se aplicam a outros casos. Extinguem-se seus efeitos com o fim das eleições e da possibilidade de questionamento de seus resultados.

Esta emenda excepcional institui um calendário específico e justifica-se em circunstâncias que – ao menos em parte do território nacional – impediriam a realização das eleições em condições seguras. Traz ainda outra marca distintiva: sua construção deu-se conjuntamente pela autoridade eleitoral e pelo Poder Legislativo, com a colaboração de autoridades sanitárias. Uma decisão que foi construída coletiva e colaborativamente por distintas instituições.

Seria um sinal de novos tempos, de diálogos interinstitucionais, de uma nova leitura de separação de poderes? O Poder Judiciário, que jogou duro com o voto impresso em todas as tentativas do Congresso Nacional (com argumentos um tanto quanto forçados), que fez uma queda de braço em relação ao alcance da quitação eleitoral e que “democratiza” a discussão sobre candidaturas independentes dos partidos apesar do texto constitucional e da resposta legislativa explícita, agora vai participar de uma construção dialógica de soluções político-jurídicas.

Autoridade eleitoral tem mais poderes que outras forças

É preciso lembrar, no entanto, que diálogo e deliberação autênticos só ocorrem quando quem participa tem igual oportunidade de se fazer ouvir e está aberta a alterar sua opinião. É preciso que haja respeito entre as participantes da deliberação e que nenhuma delas possa se impor sobre as demais.

O desenho constitucional brasileiro dá superpoderes para a autoridade eleitoral e ainda dispõe que o órgão de controle de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal (STF), compartilhe integrantes com o Tribunal Superior Eleitoral. Ainda, por desenvolvimento jurisprudencial, permite-se que seis de onze integrantes invalidem uma decisão tomada por três quintos de cada casa parlamentar em duas votações. Essa decisão judicial, para ser superada, precisa do mesmo consenso parlamentar, mas pode ser afastada outra vez por seis de onze integrantes do STF.

Para haver diálogo, precisa haver modéstia institucional. Não há colaboração quando uma das partes se vê como superior às demais. Como afirma Marjorie Marona, a Emenda 107 pode ser vista como indicadora de uma disposição. Mas, digo eu, também pode ser vista como uma exceção em tempos excepcionais. Nesta luta entre a demonização da política e uma democracia mais autêntica, o futuro nos dirá se há lugar para um diálogo colaborativo entre as instituições.

Eneida Desiree Salgado é professora de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral na Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora líder no NINC – Núcleo de Investigações Constitucionais da UFPR.

Recorde de registros de candidatura impõe desafios à Justiça Eleitoral

Recorde de registros de candidatura impõe desafios à Justiça Eleitoral

Mais de meio milhão de registros de candidatura foram submetidos à Justiça Eleitoral em 2020. O número abrange postulantes a prefeito (19.100), vice (19.129) e vereador (504.496) em todo o País. Os dados foram obtidos no domingo (27), na plataforma DivulgaCandContas, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas os quantitativos finais serão maiores. Embora o prazo para registro tenha se encerrado no sábado (26), há ainda uma janela para aqueles que foram indicados em convenção, mas não constaram das atas. De todo modo, constata-se um aumento de mais de 45.400 candidatos em relação às Eleições 2016, quando foram submetidos 496.887 registros (16.565 a prefeito, 16.950 a vice e 463.372 a vereador). As causas desse crescimento são bem conhecidas. Já as potenciais consequências não recebem a atenção devida.

Comecemos pelas causas. Em 2017, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 97, que acabou com as coligações proporcionais e criou uma cláusula de barreira, aplicável aos partidos já desde 2019. A intenção do legislador era diminuir o número de legendas, restringindo progressivamente o acesso delas ao fundo partidário e ao tempo gratuito de rádio e televisão, de acordo com o percentual de votos que obtêm nas eleições para a Câmara de Deputados. Mas, imediatamente, a alteração incentivou a disputa por capital político.

Os partidos correm para se prepararem para as inevitáveis negociações que envolverão as incorporações partidárias a partir de 2023. Elas determinarão quais legendas desaparecerão da vida política brasileira. Como prefeitos e vereadores são cabos eleitorais dos futuros candidatos a deputado nas eleições de 2022, este ano as legendas colocaram em prática o plano de expansão, regularizando diretórios e órgãos municipais há muito desativados, a fim de lançarem o máximo de candidatos a que têm direito.

Essa explosão de candidaturas testa os limites de absorção de novas demandas das eleições brasileiras, altamente institucionalizadas. Diferentemente do que ocorre em outros países, aqui a inclusão do nome de cada candidato na urna é precedida de uma verdadeira ação judicial, que tem de ser processada e julgada. Especula-se que parte considerável das candidaturas a vereador registradas este ano seja juridicamente insustentável, pois a pandemia teria dificultado que os diretórios cooptassem novos filiados e filiadas, aptos a lançarem-se como candidatos e candidatas viáveis. Mas isso pouco altera o quadro, pois a Justiça Eleitoral tem que se manifestar sobre se cada um dos pretensos candidatos reúne todas as condições previstas na lei e na Constituição.

A lei, aliás, determina que todos os pedidos de registro sejam julgados pelo juiz eleitoral e pelos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) até vinte dias antes do primeiro turno. Ocorre que, em razão de outra reforma legislativa, promovida pelo Congresso em 2015, o cumprimento desse prazo se tornou impossível em casos não triviais, que exijam provas que demandem tempo para serem produzidas, por exemplo. Com a finalidade declarada de baratear os custos das campanhas (e a não declarada de dificultar a entrada de novos nomes na política), a mini reforma de 2015 encurtou o tempo de que a Justiça Eleitoral dispõe para julgar os pedidos. Os cerca de três meses que separavam a submissão dos registros da data das eleições se reduziram a um mês e vinte dias.

Outra mudança de 2015 pode revelar-se explosiva quando combinada ao encurtamento desse tempo e aos recordes atuais de candidaturas: se o registro de prefeitos e vices for negado pela Justiça Eleitoral depois das eleições, e eles tiverem sido eleitos, a votação tem que ser repetida no município. A intenção parece justificável. O arranjo anterior, que permitia que o segundo colocado tomasse posse, partia da premissa contrafactual duvidosa de que, se a chapa eleita não tivesse constado da urna, o eleitor teria votado nas demais na mesma ordem como votou. Não há nenhuma evidência de que seria assim.

Mesmo que justificada, a nova regra injeta carga extra num sistema já sobrecarregado. Toda decisão judicial que afasta candidatos eleitos tem elevados custos sociais, políticos e econômicos. Some-se a isso o fato de que, no caso do indeferimento do registro de prefeitos eleitos, a anulação da eleição anterior pode aparecer, aos olhos da opinião pública, como consequência da incapacidade da Justiça de julgar processos a tempo, ou, pior, como uma intervenção deliberada e indevida nos resultados já divulgados. No cenário de descrédito institucional e democrático que vivenciamos, caso essa medida tenha que ser colocada em prática, vai ser difícil convencer alguns grupos de que, boas ou ruins, são essas as regras do jogo escritas pelo Congresso.

*João Andrade Neto é doutor em Direito pela Universität Hamburg (UHH), professor de Direito Eleitoral da Faculdade Padre Arnaldo Janssen e da PUC Minas, Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).