Quem acompanhou as apurações do primeiro turno das eleições de 2020 percebeu como a interpretação sobre os resultados variaram. Isso deriva, em larga medida, dos dados que são utilizados.
Quaisquer que sejam eles, o certo é que darão margens a diferentes avaliações de quais partidos foram os vitoriosos ou derrotados. Por exemplo, a forma mais usada (contar os prefeitos e os vereadores eleitos pelos partidos) tende a favorecer o desempenho de partidos como o MDB e PP, que desde os anos 1980 são fortes nas pequenas cidades do país. Ou o contrário, um partido pode vencer em cidades populosas e se sair relativamente mal no número geral de prefeituras obtidas em âmbito nacional.
Sugiro que observar a votação obtida pelos partidos nas eleições para as câmaras municipais é uma boa alternativa para dimensionar a força e a capilaridade dos partidos em território nacional. Por duas razões. A primeira é que diferentemente de candidatos a prefeito, todas as legendas tendem a apresentar candidatos a vereador onde existem diretórios municipais organizados. A segunda é que observar os votos é melhor do que as cadeiras eleitas, já que o partido pode obter uma boa votação e não conseguir eleger nenhum vereador.
Esse texto mostra a evolução da votação de seis partidos (PP, DEM, MDB, PSDB, PT e PDT). As eleições de 2020 foram disputadas por 31 legendas, mas, por limitação de espaço faço menção apenas a essas seis. Para facilitar a visualização dos resultados, cada gráfico apresenta os dados de dois partidos.
Os gráficos mostram o percentual de votos obtidos por partido por tamanho da cidade; elas foram segmentadas em quatro grupos: até 50 mil habitantes, mais de 50 mil até 150 mil, mais de 150 mil até 500 mil e mais de 500 mil habitantes. Os segmentos são arbitrários, mas dão uma ideia do padrão geral do desempenho da legenda.
O gráfico abaixo mostra a evolução do DEM (antigo PFL) e do PP (herdeiro do PDS), os mais importantes partidos do campo da direita no Brasil. Ambos disputaram todas as eleições realizadas desde a redemocratização. Em 2020, os dois partidos melhoraram o seu desempenho em relação às eleições anteriores em todos os segmentos, com destaque para a boa votação do DEM nas cidades com mais de 500 mil habitantes.
O PSDB e MDB são tradicionalmente classificados como os principais partidos de centro do país. O gráfico abaixo revela que os dois partidos têm um mesmo padrão: declinam de maneira constante desde 2008. Apesar da queda, o MDB continua sendo o partido mais votado nas pequenas cidades (até 50 mil moradores). O PSDB tem sido mais votado do que o MDB nos municípios com mais de 500 mil habitantes, tendência que se manteve em 2020, mesmo com o seu declínio eleitoral.
O PT e PDT são os dois mais longevos partidos de esquerda do atual ciclo democrático, com quatro décadas de existência. Em 2018, os candidatos das duas legendas à presidência (Ciro Gomes e Fernando Haddad) disputaram o voto dos eleitores de esquerda. Em 2020, o PDT teve um leve declínio em sua votação comparado às eleições de 2016. O PT praticamente manteve o mesmo percentual de voto de 2016, com exceção das cidades com mais de 500 mil habitantes, onde o partido cresceu, tornando-se a legenda com o maior percentual de votos dentre todas no país.
Um olhar atento aos três gráficos revela que o declínio e/ou crescimento dos seis partidos selecionados é muito reduzido quando comparamos os resultados de 2020 com o de 2016 (não ultrapassa os três pontos percentuais), o que denota uma razoável estabilidade dos principais atores do sistema partidário. De qualquer modo, podemos dividir os seis partidos em dois grupos: os que permanecem em um processo de declínio constante (PSDB, MDB e PDT) e aqueles que conseguiram se recuperar em relação em relação ao desempenho da eleição anterior (PP, DEM e PT).
A pandemia tem trazido uma preocupação especial para os políticos brasileiros nas eleições municipais deste ano: o provável aumento da taxa de abstenção eleitoral. No Brasil, o percentual de eleitores que não comparecem para votar tem oscilado pouco nos últimos anos (em média, oito em cada dez eleitores comparecem para votar), mas esse número provavelmente deve aumentar em 2020, sobretudo nas grandes cidades.
Um tema que tem sido pouco discutido é o crescimento de votos nulos e em branco (votos inválidos) nas eleições municipais. São os eleitores que, obrigados a comparecer, preferem anular o voto digitando uma sequência de números que não esteja associada a qualquer candidato ou partido, ou simplesmente apertar uma tecla (branco); a tecla é um resquício do período em que os votos deixados em branco eram contados na eleições para o legislativo. Atualmente, os votos inválidos não são considerados para nada e servem apenas para fins estatísticos, mostrando que uma parte dos eleitores preferiu não votar em nenhum dos candidatos.
Para além do registro de uma eventual insatisfação com a política, a taxa de votos nulos e em branco interessa especialmente aos candidatos a vereador. O primeiro passo para distribuir as cadeiras numa eleição para Câmara Municipal é calcular o quociente eleitoral (resultado do total de votos válidos dividido pelo número de cadeiras em disputa na Câmara); número que garante que um partido elegerá um vereador. Desse modo, quanto mais eleitores anulam ou deixam o voto em branco, menor é o quociente.
Nas últimas eleições municipais (2016) a insatisfação dos eleitores se manifestou em duas frentes. A primeira foi a eleição de candidatos outsiders – ou que não pareciam pertencer à tradicional elite partidária – em algumas capitais (Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte). A segunda foi o crescimento dos votos inválidos para vereador e prefeito, particularmente nas cidades com maior população.
Os gráficos 1 e 2 mostram, respectivamente, o percentual médio de votos nulos e em branco para prefeito e vereador nas cidades brasileiras nas últimas cinco eleições municipais. As cidades foram agrupadas em cinco tipos, segundo a faixa de população.
A semelhança entre os dois gráficos é tal que, se olharmos rapidamente, parece que eles são idênticos. Nas cidades com menor população (até 20 mil e entre 20 mil e 50 mil habitantes) os votos inválidos oscilam em um mesmo patamar e não aumentaram significativamente em 2016. Já nas outras três faixas observamos um crescimento contínuo, com um aumento mais expressivo nas megacidades (com mais de 500 mil habitantes).
Em 2002, a diferença entre o percentual dos votos inválidos para prefeito e vereadores nas pequenas cidades e megacidades era reduzida. Em 2016 a diferença cresceu para cerca de dez pontos percentuais. Portanto, o aumento dos votos nulos e em branco foi um fenômeno marcante das grandes cidades brasileiras em 2016. Selecionei algumas dessas cidades (as com mais 800 mil habitantes, segundo dados de 2010) para observarmos com mais cuidado o que aconteceu.
O gráfico 3 mostra a evolução dos votos inválidos nas 19 cidades com mais de 800 mil habitantes. Chama a atenção para uma tendência geral de crescimento constante dos votos nulos e brancos em quase todas as cidades (as exceções são: Teresina, São Luís e Goiânia). Nas quatro maiores cidades do país (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre) cerca de 1/5 dos eleitores que compareceram preferiram não votar em um dos candidatos ou partidos que disputaram.
A explicação mais óbvia para esse crescimento é que ele indicaria uma maior insatisfação de uma parte dos eleitores com a política. Mas há uma outra dimensão que precisa ser levada em conta. A rua deixou de ser um espaço de campanhas nas grandes cidades (por conta das restrições da legislação eleitoral, placas não podem mais ser colocadas nas casas e em espaços públicos, juntando-se ao tradicional outdoor que já havia sido proibido). Em 2016, o tempo de campanha no rádio e televisão foi reduzido, e com isso os candidatos passaram a ter poucas formas de se comunicarem com os eleitores.
Lembro que no dia do primeiro turno de 2016 recebi muitas mensagens pedindo sugestão de um nome para votar para vereador. Me dei conta de que a campanha de vereador (tão forte nas pequenas cidades) havia sumido da vista das pessoas nos grandes centros. Eleitores simplesmente chegam a seção eleitoral sem terem ideia de em quem votar.
No dia 15 de novembro deste ano, além das tradicionais avaliações de quais partidos foram vencedores e quais foram perdedores, faço uma singela sugestão ao leitor: dê uma olhada na taxa de votos nulos e em branco. É um bom indicador para captar o humor dos eleitores brasileiros.
Existem muitas maneiras de medir o desempenho dos partidos brasileiros em uma eleição municipal. A mais óbvia é observar o número de prefeitos e vereadores eleitos. Algumas vezes, a escolha recai sobre um segmento específico de cidades: as capitais, as cem com maior população, os municípios onde há segundo turno. Basta contar quantas cadeiras um partido obteve numa eleição e comparar com a anterior para termos um quadro geral a respeito do sucesso ou fracasso de uma legenda.
Há dois problemas com essa métrica. O primeiro é que muitas vezes o partido não apresenta candidato próprio a prefeito e participa de uma coligação, apoiando um nome de outra legenda. Nesse caso, seus votos acabam não sendo computados na avaliação.
O segundo é que a eleição de vereadores nem sempre é uma boa métrica do desempenho eleitoral. Muitas vezes um partido é bem votado e não elege um vereador; em outras, o partido mesmo com uma votação reduzida consegue eleger um dos seus candidatos (a coligação permitia que isso acontecesse).
Minha sugestão é que o melhor indicador para avaliar o sucesso dos partidos em eleições municipais é observar o percentual de votos que eles obtiveram para a Câmara Municipal. Se um partido tem um diretório em um município é bem provável que ele apresente pelo menos um candidato a vereador. Desse modo, a proporção de votos nas cidades em que o partido disputou serviria como um bom indicador de sua “força”.
Avalio aqui o desempenho do Partido dos Trabalhadores (PT), o mais organizado partido brasileiro em todas as eleições realizadas desde 2000 – ano em que a urna eletrônica foi utilizada pela primeira vez em todos os municípios. Em artigos subsequentes analisarei a performance de outras legendas.
Desempenho do PT de 2000 a 2016
Entre os analistas políticos, há um consenso de que o PT foi o grande derrotado nas últimas eleições municipais (2016). O partido perdeu vereadores e prefeitos, como mostrou Oswaldo E. do Amaral no artigo E agora, PT?. A eleição aconteceu no ano em que a presidente Dilma Rousseff foi afastada e as investigações da Lava-Jato estavam no ápice.
No meio da campanha eleitoral daquele ano, eu encontrei um candidato do PT a prefeito de uma importante cidade brasileira que relatou: “Está difícil ser candidato pelo PT. Tem muito candidato a vereador tirando o símbolo do partido do material de campanha”.
O gráfico 1 mostra a votação média obtida pelos candidatos do PT nas cinco eleições realizadas desde 2000. As cidades foram agregadas em cinco faixas, de acordo com o tamanho da população. É importante assinalar que apenas as cidades em que o partido concorreu são consideradas no cálculo.
O gráfico revela que aconteceu uma inflexão na história eleitoral do PT na disputa de 2016. Nas três faixas de menor população, o partido interrompeu o processo de crescimento contínuo de sua votação. O declínio mais expressivo, porém, aconteceu nas maiores cidades. Nos municípios com população entre 150 mil e 500 mil habitantes, onde o partido tinha obtido cerca de 10% nas três eleições anteriores, ele caiu para a faixa de 4% em 2016. Nas megacidades (população acima de 500 mil habitantes) a votação do PT vinha declinando levemente, mas teve uma queda brusca em 2016 (cerca de 5 pontos percentuais).
Para mostrar em mais detalhes a evolução da votação do PT nos grandes centros urbanos, mostro apenas os resultados das 19 cidades mais populosas, as que têm acima de 800 mil habitantes (ver na imagem abaixo). Em todas elas o partido encolheu sua votação em 2016, comparativamente à 2012. Chama a atenção o declínio constante em três cidades que eram símbolos da força do partido em 2000: Belém, São Paulo e Porto Alegre.
Nas eleições presidenciais de 2018, Bolsonaro venceu em um número expressivo de megacidades. Em boa parte delas, o PT já vinha reduzindo sua votação na disputa presidencial desde 2006. Os dados apresentados nos dois gráficos acima mostram, porém, que as dificuldades do partido nessas cidades talvez sejam mais estruturais do que a derrota para Bolsonaro tenha sugerido.
Pensando no futuro: a retomada do protagonismo do PT na disputa presidencial passa em larga medida pela reconquista das grandes cidades brasileiras. Por isso, as eleições de 2020 terão um papel tão importante para o partido.
Leonardo Avritzer recebe Jairo Nicolau para debate que tem como tema as eleições municipais. O programa foi ao ar em 03 de setembro de 2020 às 16h, transmitido ao vivo no Youtube TV da Democracia INCT e no Facebook Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação.
Os dirigentes partidários brasileiros sempre tiveram que fazer uma escolha difícil antes das eleições com relação aos seus candidatos a cargos proporcionais (vereadores e deputados): apresentar uma lista somente com nomes que pertencem ao partido ou coligar-se com outras legendas? A decisão envolvia uma série de aspectos: o potencial eleitoral do partido, a barganha pelo tempo de televisão nas eleições para o Executivo e as negociações a respeito de um eventual apoio a um futuro governo.
A partir desse ano, o dilema dos dirigentes chega ao fim, já que entra em vigor a proibição de coligação nas eleições proporcionais. Essa mudança provavelmente produzirá um forte impacto no sistema partidário brasileiro. Mas qual a razão para que uma singela alteração da legislação possa afetar significativamente a representação dos partidos?
Antes de responder, vale a pena lembrar de duas mudanças feitas recentemente no sistema eleitoral que passaram desapercebidas por muitas pessoas que acompanham a política. A primeira, que já vigorou nas eleições de 2016 e 2018, é a exigência de que um candidato obtenha pelo menos 10% do quociente eleitoral para ser eleito (o quociente eleitoral é o resultado da divisão do total de votos válidos pelo número de cadeiras em disputa). Por exemplo: se em uma eleição o quociente eleitoral é de 20 mil votos, um candidato precisa obter pelo menos 2 mil votos. Um partido que, por conta do quociente partidário (resultado da divisão do total de votos do partido pelo quociente eleitoral) consegue uma cadeira, perde essa posição se o candidato que a ocuparia tem uma votação menor que estes 10% do quociente eleitoral (digamos 1.800 votos).
Isso aconteceu com o PSL em São Paulo nas eleições de 2018. O partido perdeu sete cadeiras na disputa para a Câmara dos Deputados por conta da regra dos 10%. O quociente eleitoral no estado foi de 301.460 votos; para ser apto, um deputado necessitava obter 10% desse valor (30.146 votos). Sete candidatos do PSL, que teriam sido eleitos pela regra anterior, obtiveram menos votos do que esse patamar.
A segunda mudança importante no sistema eleitoral brasileiro entrou em vigor 2018, quando o quociente eleitoral deixou de funcionar como cláusula de barreira para os partidos. Até então, se um partido não atingisse o quociente ele estava fora da distribuição das cadeiras (daí a ideia de cláusula de barreira). A nova mudança, portanto, acabou beneficiando os pequenos partidos.
A severidade da cláusula de exclusão, sobretudo em cidades e estados que elegem um número reduzido de parlamentares, era o pavor de muitos políticos. Numa cidade com nove vereadores, por exemplo, a cláusula de barreira é de 11,1% dos votos. Por isso, era tão comum a prática da coligação; ao juntarem seus votos os partidos aumentavam a probabilidade de ultrapassar o quociente eleitoral. Em pequenas cidades, era muito frequente que os diversos partidos se agregassem em apenas duas ou três coligações para concorrer à Câmara Municipal.
O fim das coligações (mesmo com o fim do quociente eleitoral como cláusula de barreira) afetará os pequenos partidos que a utilizavam com o intuito de ultrapassar o quociente eleitoral; por vezes coligando-se entre si, outras vezes buscando a aliança com um partido grande que conseguia ultrapassar o quociente com certa segurança.
Nas eleições municipais de 2020 observaremos uma queda drástica do número de partidos representados nas Câmaras Municipais. Cerca de de 95% das cidades brasileiras elegem até 10 vereadores (o mínimo são nove). Nessas cidades, por conta do fim das coligações, a tendência é que apenas dois ou três partidos consigam eleger vereadores, deixando de fora da representação um número expressivo de legendas existentes no município.
Após o fim das eleições de 2020 devemos assistir a um inevitável processo de incorporação e fusão dos partidos. Serão milhares de candidatos e muitos partidos pequenos que devem dar-se conta que os estímulos oferecidos na “Era da hiper-fragmentação partidária” acabaram. Alguns partidos já concorrerão em 2020 sem os recursos do Fundo Eleitoral e sem poder fazer propaganda no horário eleitoral gratuito. Todos os partidos perderam a via mais fácil para chegar ao Legislativo (coligação). Tudo leva a crer que, paulatinamente, estejamos caminhando para uma nova fase: “A Era da fragmentação partidária moderada”.