Justiça à justiça eleitoral

Justiça à justiça eleitoral

Fábio Kerche e Marjorie Marona*

A pouco mais de um dia do final das eleições, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ainda se vê às voltas com o aperfeiçoamento do processo de contabilização e divulgação dos votos, que gerou uma onda de críticas no final do primeiro turno – pelo atraso excessivo se comparado com o seu desempenho em pleitos anteriores.

Nesta eleição, o TSE inovou também na concentração da divulgação dos resultados, antes realizada de forma descentralizada por cada um dos Tribunais Regionais Eleitorais nos estados. Essa decisão, no entanto, não se mostrou totalmente acertada. Em defesa do novo modelo, o ministro Barroso, presidente do TSE, argumentou que a dificuldade ocorrera em razão de problemas com um novo “supercomputador”, assegurando, no entanto, que não houvera qualquer prejuízo em relação à segurança do processo. Barroso ressaltou que mesmo um ataque hacker havia sido impedido, o que confirmaria a confiabilidade das urnas eletrônicas.

Não foi suficiente para travar os apoiadores de Bolsonaro, que se apressaram a levantar dúvidas sobre a lisura do pleito, revigorando o discurso do próprio presidente, que já afirmou que na eleição em 2018, da qual saiu vencedor, ocorreram fraudes. Alinhados à estratégia de Trump em face das últimas eleições nos Estados Unidos, Bolsonaro e seu secto colocam em suspeição a segurança das urnas e deixam sempre uma porta aberta para reclamar de eventual derrota – ou, simplesmente, para ampliar os ataques às instituições democráticas deste país.

O estratagema é primário, mas perigoso: uma das regras de ouro da democracia é que o derrotado aceite o resultado das eleições, demonstrando assim o respeito às balizas do jogo democrático. O questionamento leviano do resultado de uma eleição coloca em risco, portanto, não apenas o pleito, mas a própria democracia. Pode se supor que se Aécio Neves (PSDB) tivesse observado essa regra em 2014, quando perdeu as eleições presidenciais para Dilma Rousseff (PT), talvez não estivéssemos em uma situação política tão delicada quanto a atual, em que da moda Bolsonaro fez tendência.

O sistema eleitoral brasileiro é seguro e confiável. É preciso reafirmar. Não há qualquer indício de fraude no resultado das eleições ou de vulnerabilidade das urnas eletrônicas que desse lugar a ela. Somente os adeptos de teorias conspiratórias ou aqueles que veem algum ganho político estratégico em colocar em dúvida o nosso sistema seguem criticando o processo eleitoral, sob o prisma da segurança das urnas ou fidelidade do resultado. Mas a assertividade em relação a este ponto não nos desobriga de lançar luzes sobre uma série de outros aspectos da governança eleitoral que merece críticas.

E disso as eleições deste ano dão, de fato, testemunho. Findo o primeiro turno, nos deparamos com todos os problemas que o ativismo judicial eleitoral – a que já tivemos oportunidade de nos referir – poderia apresentar. A insegurança gerada pela atuação daqueles que deveriam zelar pela estabilidade e lisura do processo eleitoral resultou em um efetivo de mais de 700 candidatos que ganharam nas urnas, mas não sabem se poderão tomar posse, em razão de pendências judiciais. A contrapartida é que seus eleitores também não têm segurança sobre os efeitos do seu voto. Além dos 305 prefeitos e 98 vice-prefeitos, 363 vereadores estão com as suas candidaturas (vitoriosas) sob judice.

Um dos casos que mais chama a atenção, por ser em uma capital e por envolver um nome de projeção nacional, é o de Lindbergh Farias do PT do Rio de Janeiro. Mesmo sendo o mais votado entre os candidatos de seu partido para a Câmara Municipal da capital fluminense, o ex-senador ainda aguarda recurso no TSE para saber se tomará posse em janeiro. Os danos, contudo, podem ser contabilizados por Lindbergh desde a primeira decisão, tomada por um juiz eleitoral. Disto dão conta o total de votos recebidos por ele que, apesar de suficientes para assegurar uma vaga no legislativo, foram em número muito inferior ao esperado, considerando sua trajetória. Pelo menos em parte é possível supor que a insegurança gerada pela decisão judicial acerca da viabilidade de sua candidatura reorientou muitos de seus potenciais eleitores.

Um outro bom exemplo das intempéries que a justiça eleitoral pode impor, discricionariamente, ao desenvolvimento equilibrado da disputa deu-se em Porto Alegre. O então candidato à prefeitura, José Fortunati (PTB), que vinha embolado em segundo lugar nas pesquisas, desistiu da disputa às vésperas do primeiro turno, em razão de uma decisão judicial de cassação de seu vice-prefeito. A sua retirada do pleito (induzida pela justiça) reorganizou o jogo eleitoral na capital gaúcha a favor de Sebastião Mello (MDB), e pode ter sido decisiva para que um segundo turno ocorresse entre ele e Manuela D’Ávila (PCdoB), que vinha aparecendo com vantagem nas pesquisas até aquele momento.

A boa notícia é que, no agregado, houve uma ligeira melhora no número de pendências judiciais de candidatos eleitos, quando comparado com as eleições municipais de 2016 – 12,2% a menos. É pouco, mas é um avanço. Por enquanto, seguimos com 13 candidatos que estão na disputa no segundo turno e que enfrentarão concorrentes com pendências na justiça eleitoral. O certo é que se a justiça eleitoral brasileira merece ser criticada não é pela alegada falta de segurança das urnas ou qualquer condução fraudulenta dos resultados. Até na crítica devemos ser justos.

Ufanismo até certo ponto: a Justiça Eleitoral no Brasil

Ufanismo até certo ponto: a Justiça Eleitoral no Brasil

Houve uma certa onda de ufanismo em relação à Justiça Eleitoral brasileira frente às incertezas da eleição presidencial nos Estados Unidos. Como lá não existe uma instituição nacional encarregada de regular o pleito, muitos lembraram de nossos juízes e promotores eleitorais e do seu papel de assegurar a observância das regras eleitorais. Alguns vibraram com o aparente contraste: no país do Norte, instabilidade e atrasos gerados pela baixa institucionalização; no país latino-americano, regularidade e agilidade assegurados por um modelo de governança eleitoral institucionalizado.

Contudo, é possível argumentar que, pelo menos nestas eleições, estamos testemunhando uma espécie de americanização do pleito. Graças aos variados instrumentos processuais, múltiplos pontos de acesso à justiça eleitoral e perfil dos legitimados à propositura das ações, diferentes interpretações de juízes e promotores sobre vários aspectos do processo eleitoral geram certa instabilidade também no Brasil.

O quadro foi agravado pela redução do tempo da campanha, que aprofunda o descompasso entre as dimensões política e jurídica das eleições. Em regra, não é possível vencer todas as instâncias de revisão judicial no período em que decorrem as eleições – muitas vezes, as decisões dos juízes de primeira instância geram efeitos irreversíveis. Na prática, embora a justiça eleitoral seja uma instituição com abrangência nacional, as decisões são tomadas por milhares de juízes, localmente.

Desde o registro das candidaturas, passando por cada ato da campanha eleitoral e o julgamento das contas, quase tudo pode ser objeto de disputa judicial. Nem mesmo o dia da votação escapa. Ao que tudo indica, os eleitores de Macapá terão que esperar por mais tempo para escolher seus representantes enquanto os dos outros municípios do Amapá, que enfrentam os mesmos problemas de falta de energia da capital, vão às urnas no próximo domingo. Na justiça eleitoral, o que vale para uns, nem sempre vale para outros.

Já no marco zero da construção de uma candidatura a justiça eleitoral apresenta-se. Se os partidos políticos são o primeiro filtro na construção da representação eleitoral no Brasil, já que as candidaturas são obrigatoriamente lançadas via agremiações partidárias, o segundo é a justiça eleitoral.

São os juízes eleitorais que definem se as candidaturas vão vingar. Há uma gama de possibilidades, legalmente previstas, para que a justiça eleitoral barre uma candidatura, indeferindo o pedido de registro. A mais comum é a ausência de requisito de registro, mas se destacam, também, aqueles indeferimentos fundamentados na Lei da Ficha Limpa (LC 64/90), incluídos aí os casos de abuso de poder, e na Lei das Eleições (L9504/97), geralmente por conduta vedada e gasto ilícito de recursos.

Do total 557.392 pedidos de candidatura para as eleições do próximo domingo, 19.316 foram consideradas inaptas pela Justiça Eleitoral. Isso significa que 3,47% dos candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador não puderam concorrer, por decisão judicial. Nos casos de indeferimento de registro, 75,26% dos candidatos ficaram de fora do pleito por ausência de requisito legal. O restante dos indeferimentos de candidaturas deu-se principalmente com base na lei da Ficha Limpa (12,71%), aí incluídos os casos de abuso de poder. Vale a pena registrar que a atuação da justiça eleitoral no julgamento dos registros de candidatura não é uniforme e guarda apenas relativa associação com o volume de candidaturas apresentadas em cada região do país.

A tutela e escrutínio judicial das virtudes do voto ameaça até as manifestações mais criativas de construção da representação política. Já registramos aqui a intervenção desestabilizadora da justiça eleitoral em face das candidaturas coletivas/compartilhadas, que saltaram de 13, em 2016, para 257, em 2020, segundo os dados da CEPESP/FGV.

Até que o Tribunal Superior Eleitoral se manifeste de forma definitiva sobre o tema, os eleitores seguem, às cegas, em direção às urnas no próximo domingo. Em Fortaleza, uma candidatura desse tipo está em situação precária, ao mesmo tempo que em outras cidades as candidaturas coletivas/compartilhadas não são ameaçadas.

Outro exemplo do paradoxo da justiça eleitoral, criada para gerar estabilidade, mas que, às vezes, gera o oposto, é encontrado em Porto Alegre. Na corrida à Prefeitura, José Fortunati (PDT), que vinha aparecendo bem posicionado nas pesquisas, renunciou a sua candidatura depois que seu vice foi barrado pela justiça eleitoral. O impacto sobre a corrida eleitoral de um candidato empatado em segundo lugar em uma eleição que deve ir para o segundo turno a menos de uma semana das eleições não é um elemento para a coluna de pontos positivos para nosso sistema.

No Rio de Janeiro – e desta vez vinculada à uma candidatura à vereança – outro político tradicional, Lindbergh Farias (PT), redireciona parte de seus esforços de campanha para convencer os eleitores de que seu voto não será em vão frente a incertezas geradas por uma decisão da Justiça eleitoral e pela demora das outras instâncias.

Da tutela e escrutínio das virtudes do voto, a justiça eleitoral avançou também para a da doação dos cidadãos. Uma batalha judicial foi travada em torno de uma live que Caetano Veloso anunciava como evento de arrecadação para as campanhas de Manuela D’Ávila (PCdoB) e Guilherme Boulos (Psol) às prefeituras de Porto Alegre e São Paulo, respectivamente. Neste caso, a candidatura do PCdoB mobilizou sua assessoria jurídica e conseguiu reverter a decisão da justiça eleitoral gaúcha, garantindo a realização do evento.

Teve também repercussão a proibição da divulgação de pesquisa eleitoral realizada pela Datafolha na cidade de São Paulo atendendo ao pedido do candidato apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro, Celso Russomanno (Republicanos). A batalha de liminares poderia resultar em um quadro sui generes em que o eleitor de São Paulo seria privado de avaliar as chances dos candidatos e, eventualmente, votar estrategicamente, enquanto que em tantas outras capitais e municípios os cidadãos estariam mais plenamente informados. Felizmente, a decisão foi revertida a tempo.

A agilidade na divulgação dos resultados eleitorais e a segurança das urnas e das eleições, sob responsabilidade da Justiça Eleitoral, é admirável e nos diferencia de outras experiências democráticas. Mas essas tarefas são apenas uma parte da responsabilidade de juízes e promotores eleitorais. Quando se observa o quadro todo, agravado por uma corrida eleitoral tão curta, é prudente trocar o ufanismo por cautela e espírito crítico.

Pra campanha ficar Odara…

Pra campanha ficar Odara…

Esta semana viralizou nas redes sociais um vídeo de Caetano Veloso, e não era com ele cantando. O compositor, falando para a câmera de Paula Lavigne, criticava decisão da Justiça Eleitoral gaúcha que proibia Manuela d’Ávila, do PCdoB de Porto Alegre, de divulgar a live que o cantor realizaria para arrecadar fundos para a campanha da candidata. A decisão gerava dúvidas se o evento poderia ou não ser realizado. Munido da legislação eleitoral, Caetano afirmava que faria o show, quase um “deixa eu cantar”.

A decisão é provisória, mas o embate não deverá ser o único desse tipo. Isso porque se tornou cada vez mais comum no Brasil a transposição para a Justiça Eleitoral das disputas entre os candidatos, em uma modalidade de judicialização das eleições que atinge as campanhas eleitorais.

As eleições tornaram-se um campo fértil para intervenção de juízes e promotores e isso se deve ao fato de que se combina, no Brasil, um quadro institucional que oferece inúmeros pontos de acesso ao Poder Judiciário. Para o caso da Justiça Eleitoral, há previsão legal de variados instrumentos jurídicos que estão à disposição dos cidadãos, mas, sobretudo, podem ser mobilizados estrategicamente pelas candidaturas. Como consequência, quase todos os aspectos do processo eleitoral podem ser questionados judicialmente.

Ainda que este modelo de governança eleitoral tenha sido pensado para garantir a legitimidade das eleições, em um ambiente de generalizada desconfiança e visão profundamente negativa da política e dos políticos, o resultado pode não ser o desejável.

Limitações dificultam a arrecadação para quem não pode doar para si mesmo

Entre as principais ferramentas de controle judicial da influência do poder econômico ou abuso de poder nas eleições, destaca-se a representação eleitoral. Esta serve para apurar e punir infrações às normas eleitorais que possam desequilibrar a disputa, incluídas aí as irregularidades referentes à propaganda eleitoral e doações e contribuições para campanhas. A discussão em torno da live de Caetano Veloso envolve, justamente, estes campos.

Equiparado a um showmício pela justiça, o que se pretendia, segundo seus organizadores, era promover um evento de arrecadação para as campanhas de Manuela e, também, de Boulos, respectivamente às prefeituras de Porto Alegre e São Paulo. A peculiaridade se restringe ao fato de que, no lugar de um teatro, a performance de Caetano aconteceria no universo virtual. A iniciativa, no entanto, tornou-se objeto de disputa, o que coloca em questão a conveniência de uma justiça que escrutina e tutela não apenas as virtudes do voto, mas também das doações dos cidadãos.

A questão se torna urgente diante de um quadro em que progressivamente se limitam as campanhas eleitorais e se alteram as regras de obtenção de recursos para que os candidatos possam divulgar suas ideias e projetos para suas cidades. Se houver limites tão rigorosos para arrecadação, quem poderá disputar eleições? Segundo matéria na imprensa, autofinanciamento já é a segunda maior fonte de recursos para os candidatos, perdendo apenas para o dinheiro vindo dos próprios partidos. Somente os ricos serão competitivos?

Profissionalização das assessorias jurídicas de campanha

Ao mesmo tempo em que avança o fenômeno da judicialização das eleições, observa-se a crescente profissionalização das assessorias jurídicas das campanhas. Bancas de advogados solapam a informalidade que marcava no passado recente a atuação errática das candidaturas perante a Justiça Eleitoral.

São expressivos os dados do TSE sobre litigância nas eleições de 2018. Embora os registros de candidaturas e as prestações de conta ainda sejam os mais contestados judicialmente, perfazendo aproximadamente 78% das ações propostas perante os TREs, as representações são a terceira classe processual mais mobilizada. E das 3.849 reclamações propostas, aproximadamente 82% questionam irregularidades em propagandas. Esse é um indicativo de quais são os principais instrumentos por meio dos quais as assessorias judicializam as campanhas, tendo por objeto preferencial justamente a propaganda eleitoral.

Nenhuma candidatura que se pretenda competitiva prescinde, atualmente, de planejamento jurídico estratégico, o que não envolve apenas aspectos defensivos. As candidaturas e campanhas dos adversários são escrutinadas em cada etapa do processo eleitoral. Não surpreende, portanto, que tenha sido um dos adversários de Manuela d’Ávila a atiçar a Justiça Eleitoral. Cada vez mais, advogadas e advogados dividem os holofotes com marqueteiros no universo das campanhas eleitorais. Diante deste quadro é que a acossada Justiça Eleitoral precisa exercer suas virtudes passivas – talvez mais do que nunca.

Candidaturas coletivas: parte do problema ou da solução?

Candidaturas coletivas: parte do problema ou da solução?

Alguns dias após o encerramento do período de registro de candidaturas, o Ministério Público Eleitoral do Ceará pediu a impugnação de uma candidatura coletiva do PSOL para a Câmara Municipal de Fortaleza. Nessa modalidade, um grupo promete atuar em conjunto durante o mandato embora o registro da candidatura seja individual, como determina a Constituição. A promotora que conduz a ação argumenta que não haveria respaldo jurídico para esse modelo de candidatura e que isso poderia “induzir o eleitorado ao erro”. Argumentos, no mínimo, discutíveis.

As candidaturas coletivas e mandatos compartilhados não são novidade. Vinculados às lutas e movimentos por aprofundamento da democracia, da ampliação e pluralização da representação política e do fortalecimento dos mecanismos de accountability eleitoral, as experiências multiplicam-se. O que varia são a iniciativa, acesso, distribuição de poder, processo de tomada de decisão, partilha de custos e benefícios, mecanismos de interação, etc.

No cenário internacional, são exemplos o Demoex (Suécia, 2002-2013), o Partido Pirata (em mais de 30 países, desde 2006), o Senator Online (Austrália, 2007-2019), Movimento Cinco Estrelas (Itália, desde 2009), DemocracyOS (Argentina, desde 2012) e o Podemos (Espanha, desde 2014).

No Brasil, desde 1994 vem sendo ampliadas as experiências de candidaturas que incorporam alguma lógica coletiva/compartilhada. Foram mais de cem campanhas legislativas em todo o Brasil, em diferentes momentos, para diferentes cargos (vereador, deputado estadual, deputado federal e senador), em pelo menos cinquenta municípios, espalhados por 17 estados da federação, representando mais de vinte partidos políticos, segundo o levantamento da Raps.

Crescem as candidaturas coletivas pelo Brasil

Embora não haja previsão legal – a PEC 379/17, que visa regulamentar as candidaturas e mandatos coletivos está em tramitação – elas são uma realidade que se expandiu na eleição municipal deste ano. Apenas na capital paulista são pelo menos 34 candidaturas coletivas; no Rio de Janeiro somam-se, no mínimo mais duas. Em Porto Alegre, há notícia de pelo menos uma candidatura coletiva. Em Salvador mais uma. E em Belo Horizonte, onde já há experiência de mandato coletivo na Assembleia Legislativa, pelo menos uma dezena de candidaturas coletivas disputam vaga na Câmara de Vereadores. As chapas organizadas para disputa nesta modalidade mobilizam candidatos de partidos à esquerda e à direita do espectro político-ideológico: PSOL, PT, PC do B, mas também REDE, DEM e MDB lançam-se à experiência.

A falta de previsão legal não torna a experiência ilegal, no entanto. Isto porque o registro da candidatura é feito em nome de um candidato, que deverá atender a todos os requisitos legais e a prática do mandato coletivo não fere os ditames constitucionais, legais e regras das casas legislativas.

O que acontece é que o mandatário possui um acordo informal com o restante do grupo para que as decisões políticas, definição de projetos de leis e votação sejam tomadas em conjunto. O mandatário torna-se uma espécie de “porta-voz” do grupo que, de resto, vai participar nos bastidores, nas discussões e debates políticos.

Nos outros estados o eleitor pode escolher, mas no Ceará não?

A atuação do Ministério Público do Ceará, portanto, é no mínimo discutível, do ponto de vista do mérito. Mas o nosso ponto aqui é outro e anterior. O exemplo de Fortaleza é ilustrativo de que as instituições judiciais eleitorais, pensadas para assegurar a justiça do pleito, entendida como neutralização dos impactos de elementos não políticos no resultado, insere, ela mesma, dimensões de instabilidade. E isso ocorre justamente no momento em que a soberania popular deveria ser o principal juiz do processo – as eleições.

Particularmente, o Ministério Público Eleitoral, a exemplo da atuação dos diferentes Ministérios Públicos em questões de outra ordem (defesa de direitos difusos e coletivos e controle e combate da corrupção), arvora-se à representação do interesse público sob o pressuposto de uma discutível hipossuficiência da sociedade.

Ou seja, supõe-se que os eleitores não seriam capazes de decidir por si só se uma candidatura coletiva é melhor que a individual. Lança-se em uma disputa pela representação dos interesses da sociedade sem que se possa vislumbrar qualquer mecanismo de autorização desta mesma sociedade, tampouco de responsabilização de promotores e procuradores.

Some-se a isto o fato de que a autonomia funcional dos membros do Ministério Público – aqui incluídos os promotores eleitorais – implique em uma completa falta de previsibilidade acerca dos resultados de sua atuação, quando observados em conjunto.

Concretamente, é possível que no Ceará os eleitores não possam aderir às candidaturas coletivas, enquanto em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador e outras capitais e municípios brasileiros, experiências de mandatos coletivos sejam bem-sucedidos eleitoralmente.

Como diz o jargão, e que se aplica para este caso, muitas vezes o remédio, em altas doses, pode se transformar em veneno.

Eleições de toga: por que devemos olhar para a Justiça Eleitoral?

Em análises sobre eleições, comumente estamos de olho nos candidatos, seus partidos e nas pesquisas de opinião. A discussão sobre as regras eleitorais, embora de interesse mais restrito, também atrai especialistas e políticos: qual o impacto de uma determinada regra sobre as estratégias e os resultados eleitorais?

Este Observatório das Eleições 2020 reúne alguns dos mais importantes cientistas políticos brasileiros para, sob este espírito, debruçar-se sobre os diversos aspectos das eleições municipais que acontecem ainda este ano. Não faltarão análises competentes sobre as candidaturas mais relevantes, as alianças, o desempenho dos partidos e, também, sobre o modo como a mudança excepcional das regras de organização desta eleição impacta no seu resultado. O fim da coligação partidária para eleições proporcionais irá diminuir o número de partidos com representação nas câmaras de vereadores? As eleições ficarão restritas aos assuntos locais ou o debate será “nacionalizado”?

Mas aqui neste Observatório os leitores encontrarão, também, atenta e detalhada análise sobre o desempenho dos atores da Justiça Eleitoral. E de que vale enveredar esforços para compreender e acompanhar a atuação de juízes e promotores eleitorais? Encarregados de manter a lisura do pleito, em um modelo não tão comum em perspectiva comparada – de chamada governança eleitoral – atores que não disputam os votos dos eleitores, não aparecem nos programas de rádio e TV, vem ganhando protagonismo pela capacidade crescente de interferir em qualquer fase do processo eleitoral – replicando aquele que parece ser o padrão que se estabeleceu entre as instituições judiciais e políticas no Brasil. Da convenção partidária à cassação de mandato, passando pelo registro das candidaturas e pela propaganda eleitoral gratuita, (quase) tudo pode ser objeto de intervenção ministerial e decisão judicial. O impacto sobre a disputa travada entre partidos e candidatos e, por consequência, sobre o resultado das eleições, é extenso – e, muitas vezes, indesejável do ponto de vista da democracia.

O exemplo mais recente de como uma decisão jurídica pode modificar o jogo eleitoral talvez seja o do impedimento da candidatura do ex-presidente Lula nas últimas eleições presidenciais de 2018. Baseados em decisões anteriores que permitiram que condenados (mesmo em 2º instância de julgamento) concorressem, os advogados do ex-presidente solicitaram que ele pudesse disputar o pleito, cujas pesquisas apontavam sua superioridade. No entanto, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em uma decisão de 6 votos contra 1, determinou que Lula não poderia enfrentar seus adversários. Ainda que não se possa estabelecer uma relação direta entre a decisão do TSE e o resultado das eleições presidenciais, há indícios de que a substituição do ex-presidente por seu vice, Fernando Haddad, na corrida eleitoral, teve impacto sobre a disputa, considerando, particularmente, que a eleição do atual presidente surpreendeu a maior parte dos analistas que até então indicavam ser remotíssimas suas chances de vitória.

É claro que muita coisa poderia ter acontecido se Lula pudesse ter disputado o pleito em 2018, inclusive sua derrota. Mas é também evidente que aquela decisão – tomada por juízes, não eleitos, diga-se de passagem – teve um impacto no resultado e nos rumos do país, hoje sob a batuta do ex-capitão – até ali um deputado de atuação política marginal de um partido sem relevância. Se regras importam no resultado do jogo, os juízes eleitorais – que as fazem e as aplicam – também.

Agora em 2020, teremos eleições para prefeito e para vereadores em mais de cinco mil municípios espalhados pelo país. Há cidades com mais eleitores do que muitos países, como São Paulo, com mais de oito milhões de eleitores, contrastando com Araguainha (MT) onde apenas 954 cidadãos estão aptos a votar. Em comum, o fato de que independentemente da extensão do colégio eleitoral, haverá em cada um dos municípios juízes e promotores eleitorais acompanhando o processo e empoderados, por exemplo, para retirar candidatos do pleito e até cassar os eleitos pelo voto popular, em algumas circunstâncias. Para que se tenha uma ideia da extensão do impacto da atuação dos promotores e juízes eleitorais, convém lembrar que na última eleição municipal, em 2016, 145 candidatos mais votados em diversos municípios não tinham, no dia da eleição, uma resposta definitiva de seu registro de candidatura. Isso implica dizer que, mesmo tendo sido ungidos pelo voto popular, não sabiam se, de fato, assumiriam os respectivos mandatos.

Nos casos de indeferimento do registro de candidatura do titular ou vice em eleições majoritárias (como as de prefeito, agora em 2020), demanda a realização de novas eleições – e o mesmo se diz em relação à cassação de diploma ou mandato. É inegável que a cassação do mandato, registro ou diploma de um prefeito, por exemplo, importa no dilema entre legalidade e soberania. Por um lado, pretende-se restaurar a legitimidade de eleições supondo o resultado viciado por uma irregularidade; por outro, contudo, esvazia-se a soberania popular, pelo menos até que novas eleições sejam realizadas. E esta é uma tarefa que muitas vezes fica enredada nas disputas judiciais ao longo das várias instâncias da Justiça Eleitoral, operando vácuos de soberania extremamente prejudiciais não apenas para o eleitor imediato, mas para a democracia de um modo geral.

Alguns dados gerais sobre realização de eleições suplementares, aquelas feitas fora do calendário nacional, ilustram o quadro. Em 2012 foram realizadas oito, sendo a metade delas suspensas em meio a disputas judiciais. Em 2014 foram realizadas 29 eleições suplementares, das quais dez foram suspensas judicialmente. No ano seguinte, em 2015, realizaram-se mais 23 eleições suplementares, suspendendo-se judicialmente quatro; em 2017, das 61 eleições suplementares realizadas, 4 foram suspensas; e, finalmente, em 2018, foram realizadas 35 eleições suplementares, das quais duas foram suspensas e um judicialmente cancelada.

Considerando o modelo de governança eleitoral em vigor no Brasil – em que a justiça eleitoral acumula funções normativas, administrativas e jurisdicionais – a estabilidade do processo democrático e, consequentemente, a confiança do eleitor, dependem do desempenho de promotores e juízes eleitorais. As alterações normativas realizadas às vésperas das eleições deste ano ampliam, ainda mais, os fatores de instabilidade. Acompanhar, portanto, a atuação dos juízes e promotores eleitorais tornou-se tão importante quanto observar os eleitores, os candidatos e seus partidos.